Existem dois procedimentos no trabalho de Marina Saleme que são evidentes nessa exposição e que não necessariamente estão separados ou individualizados. Tais procedimentos se confundem, invadem-se mutualmente, criando um processo investigativo dos mais instigantes. O primeiro deles é o fato de sua obra revelar ocultando, isto é, o acúmulo de camadas e as diferentes técnicas que são empregadas no trabalho criam uma volumetria que supostamente nos afasta da primeira camada. Contudo, a artista elabora um sistema que não nos deixa esquecer dessa imagem inicial, levando-nos a um território de novas descobertas, achados e premissas sobre ela que nos faz valorizar seu potencial pictórico e – por que não? – mágico.
Em Pares, uma série de quatro fotos documentadas pela artista no Regent’s Park em Londres, temos um exemplo dessa exploração paradoxal entre aparência e ausência que tanto perpassa sua trajetória. As fotos foram impressas com efeito reticulado, permitindo que, a depender da distância e da perspectiva que o espectador toma em relação à obra, é possível perceber gradativamente a passagem entre uma foto que documenta (com uma atmosfera mais densa e silenciosa), uma paisagem bucólica e finalmente a aparição de uma massa pictórica que se impõe como uma personagem e não uma ilustração daquela cena. O espectador parece perder seu senso de orientação, pois uma espécie de turbilhão de cores e formas cria uma outra capacidade de entendimento sobre o real, sobre aquilo que o cerca. Conforme a posição em relação à imagem, o espectador pode apagar ou revelar personagens, árvores, flores, chão ou nuvens. De certa forma, ele se coloca como protagonista e autor de uma narrativa.
Fotografia e pintura mesclam-se em um mesmo repertório: o de criação de situações capazes de subverter a ordem do plano e daquilo que está diante de nós. Passamos a duvidar sobre o que sempre se constituiu como verdade. A estratégia de revelar ocultando também está presente na série O passeio, de 2013, em que, de forma surpreendente, a artista se depara com uma série de árvores: com a intenção de serem protegidas do frio, estas foram cobertas por sacos de café. O modo como foi feito esse procedimento transmite às árvores encobertas um valor altamente antropomórfico. Remetendo, de certa forma, à disposição dos soldados de um exército, aquelas “pessoas” parecem marchar a esmo. Diante dos graves fatos políticos que o mundo atravessava naquele início de ano, é difícil não se lembrar da grande massa humana de imigrantes que arriscam suas vidas cruzando mares e oceanos com a esperança de uma vida melhor do que em seus países de origem, onde são massacrados por guerras civis, fome e todo tipo de desolação. Como corpos ausentes de carne, o passeio de Marina se coloca como um grito surdo e emocionado contra a hipocrisia do mundo.
As pinturas de Marina – e também uma série de fotografias intitulada As verdades – revelam outro procedimento: a economia de gestos investe na construção de uma narrativa que se faz aberta ou flexível para o espectador. Nessa série fotográfica, observamos que a imagem inicial de duas traves de futebol feitas com estacas de madeira (como aquelas fabricadas provisoriamente à beira do mar), é transformada paulatinamente, por meio de uma construção pictórica, em uma espécie de casa. Os vazios (a ausência, a falta ou o débito) das duas traves se veem preenchidos ao longo da sequência fotográfica, transformando uma gambiarra ou ainda uma paisagem prosaica – capturada pela artista de forma totalmente ocasional – em um arquétipo de abrigo ou morada. Como em um filme, peça, livro ou qualquer suporte narrativo, somos guiados a projetar uma história, um acontecimento que se faz de forma incessante e envolvente. É também o caso de Garranchos, um políptico em que imagens recortadas de galhos de uma mesma árvore compõem simbolicamente uma dança. A disposição das imagens – que nunca obedece a um padrão, isto é, o políptico pode ser montado das formas mais diversas – e a maneira intimista e poética como os galhos foram documentados geram a representação de um movimento circular que remete diretamente a um baile. A sombra do galho contra a luz da cidade reforça um tom de celebração do corpo em deslocamento. Mais uma vez, elementos da natureza se confundem com aspectos humanos.
É curioso pensar que a captura das imagens pela fotografia quase sempre coloca Marina em uma posição de “turista acidental”. E é esta característica do acidente, do acaso ou do aleatório que, parece-me, move sua pintura. Seus trabalhos possuem uma aparência de recortes, paisagens ou formas díspares que, ao se encontrarem, avizinhando-se, acabam formatando uma sequência típica da narração. Trata-se de um encontro de ilhas, territórios semânticos, que firmam proximidades e consequentemente constroem afinidades eletivas. Especialmente nos dípticos aqui expostos o que se revela é um constante atrito e conformidade entre as cores e formas construídas. Figura e fundo, luz e sombra estão constantemente negociando espaços, criando ritmos e (des)aparições. É possível perceber nesse corpo de trabalhos a ocorrência de um senso que aponta para uma característica de imprecisão, no sentido de não estar finalizado. Essa a natureza é a principal qualidade da obra de Marina: o eterno desafio de se refazer a todo o instante, de exibir sua própria inconformidade e o compromisso com a mutabilidade. No conjunto de pinturas que formam um painel, observamos a presença da imagem de uma mulher e uma criança sentadas como se estivessem brincando ou interagindo – a mesma que aparece em Pares.
Tanto em suas fotos quanto em suas pinturas sobressai um ambiente de silêncio e melancolia. E é a introdução de pequenos gestos, a harmonia entre fotografia e pintura construindo um diálogo de intersecção e narrativa poética coesa, assim como uma estrutura “aparentemente” em débito, logrando um repertório de fabricações sutis e intensas, que fazem da obra de Marina Saleme uma pesquisa única.