Real

Paulo Miyada
Instituto Figueiredo Ferraz, 2019

— Digamos que você escolha duas, e apenas duas imagens.

— Duas? Mas aqui tem tantas.

— Sim, você verá que duas rapidamente viram quatro, depois oito…

— Então aquelas duas ali: Cinco casas e Paisagem azul com cinco casas. — Ótimo, porque nesse caso os títulos são intercambiáveis, e isso pode ajudar. De partida, podemos concordar que são duas pinturas equivalentes.

— Não, uma é horizontal e a outra vertical. — Sim, mas a informação objetiva – os objetos descritos e os enunciados – são análogos.

— Uma paisagem azul, cinco casas.

— Ou nada disso. Um retângulo azul com cinco marcas pretas em formato de traves de futebol e ao redor de cada uma delas uma hachura embranquecida.

— Mas isso não é o que o título diz.

— Não. É o que se apresenta imediatamente ao olhar. Mas essa descrição também se aplica indistintamente às duas pinturas.

— Então você acha que elas são iguais?

— Claro que não, mas elas são equivalentes em diversos aspectos, o que ajuda a pensar com mais clareza sobre suas diferenças.

— Uma é vertical e a outra é horizontal.

— Você já disse isso.

— Numa delas, as marcas (as “casas”) estão todas próximas umas das outras, na outra, elas aparecem mais espaçadas e o seu tamanho varia mais ou menos como se estivessem em perspectiva.

— Quanto mais perto, maior.

— Sim. E na verdade os azuis não são tão iguais. Eles têm o mesmo tom e o mesmo matiz, mas numa delas a tinta foi aplicada de modo muito desigual, deixando transparecer o escuro da camada anterior.

— Existem situações em que encontramos imagens assim, compostas de elementos similares, mas com disposições e densidades distintos.

— Fotografias tiradas em sequência no mesmo lugar. Quadros de um filme em película. Lembranças consecutivas de uma situação.

— Isso mesmo. Eu acho que essa artista deve ter um olho muito bom para esse tipo de variação.

— Para enxergar cenas semelhantes como diferentes?

— E para perceber muitas cenas em uma só. Sua relação com a fotografia demonstra isso: como uma imagem base trabalha de modos distintos dependendo do que se sobrepõe a ela. É o que acontece nas séries O céu que nos protege e Sábado. As massas de cor e a direção das pinceladas com diferentes diluições de tinta geram uma presença que tanto pode expandir quanto comprimir a espacialidade e a atmosfera da fotografia original.

— Mas aquela outra série que parte de fotografias, chamada Real, parece diferente. O espaço e o contexto fotografado permanecem sempre íntegros, apesar das intervenções pictóricas.

— Sim, porque essa percepção aguda das diferenças oferece um atalho: mesmo que a cena permaneça intocada, ela traz em si um número imenso de possibilidades latentes, que a artista materializa como se ligasse pontos em uma ampla digressão do olhar.

— Por isso talvez ela também experimente a soma de imagens fotográficas sem pintura ou desenho, como O passeio e Garrancho. — Acho que sim. Mas o mais interessante é pensar pelo caminho contrário, como isso se rebate no corpo de trabalho principal de Marina Saleme, as suas pinturas.

— Você acha que tem alguma coisa a ver com isso?

— Nós começamos a pensar nesse assunto por causa de duas pinturas, então, sim. Eu acredito que nós só conseguimos remeter suas pinturas a paisagens por causa de um recurso similar, mas no sentido inverso. É o que permite ao olhar perceber pistas a partir das quais extrapola interpolações de espacialidade, volume, distância e assim por diante. A artista pinta campos de cor, manchas, gotejamentos… é preciso algum trabalho visual/mental, mesmo que involuntário, para perceber nuvens, chuvas e montanhas.

— Mas em Noite com nuvens (díptico), por exemplo, percebo como acontece esse tipo de permutação entre as cores que identifico como nuvem, como solo e como céu; mas o que pensar da diferença das tonalidades de rosa?

— É aí que fica divertido. Não é porque a noção de paisagem depende desse dispositivo de imaginação visual que todas as pistas cumprirão uma função objetiva. Pelo contrário, cada escolha cromática e cada silhueta reflete critérios pictóricos que transbordam a descrição paisagística. Isso não quer dizer que nossa percepção não tentará produzir alguma legibilidade de cada decisão, mas às vezes simplesmente faltarão analogias possíveis e, nesses momentos, a obra estará lá nos lembrando que ela não é mais nem menos do que uma pintura.

— E a chuva na pintura não molha ninguém.

— A chuva na pintura é uma informação plana. E a tinta está seca.

— Essa conversa está me lembrando de uma outra coisa que eu fazia quando era criança. Ficava minutos inteiros olhando para os azulejos da cozinha, deixando o olho deslizar nas padronagens de volutas e curvas, até que começavam a aparecer rostos, monstros e outras imagens que obviamente não estavam lá.

— Eu fazia isso com o tapete da sala. E essa artista, a Marina Saleme, ela já trabalhou muito com padronagens que remetem a azulejos, ritmos de volutas e arabescos. Pendente é o exemplo mais próximo nesta exposição… Eu apostaria que ela também pode passar longos períodos olhando para padrões e ritmos, encontrando dentro deles um mar de exceções, enquadramentos, sobreposições e rimas entre formas.

— Muitos artistas ligados ao surrealismo valorizavam coisas assim, porque eram evidências de que enxergar vai além da apreensão objetiva das formas do mundo.

— Você pode chamar isso de inconsciente, por um lado, ou de excedente de consciência, por outro. Em todo caso, é muito significativo pensar que uma artista brasileira que começou sua produção na década de 1980 possa estar interessada em um recurso como esse, cujos meandros transformam processos de percepção.

— Por quê?

— Porque os discursos dos artistas da época, especialmente dos pintores, passavam principalmente por dois valores: o corpo-a-corpo com a materialidade da pintura, por um lado, e a possibilidade de simulação de códigos, signos e linguagens, por outro. Ainda que a escala da produção pictórica de Marina Saleme dê pistas de seu endereço histórico, sua proficiência visual passa por uma via alternativa, que cria algum desafio para a justaposição de sua pintura com a de vários de seus colegas.

— Realmente existe algo singular nessas duas vezes cinco casas… mas olhando para elas e voltando para as intervenções em fotografias, estou pensando agora de outro modo. E se esses desafios de variação de percepção e de “excedente de consciência”, como você diz, não nos falarem apenas de operações artísticas possíveis, mas também do acordo tênue que mantém nossa ideia de que o real é algo estável, cuja leitura é contínua e confiável.

— Você diz, como se nos colocássemos no lugar de quem transvê a cena do Céu que nos proteje, por exemplo?

— Imagina só, você olha para a frente em um dia qualquer e as nuvens não só estão se avolumando sobre o parque: a atmosfera toda se transformou, o céu se fez espesso e colorido, o solo é que parece abstração.

— É que a continuidade das coisas é muito mais frágil do que imaginamos. Os desvios de percepção às vezes são os atos-falhos que dão indícios da real fragilidade do real.

Tragicamente real

Felipe Scovino
Paço Imperial, 2016

Para compreendermos o início da trajetória de Marina Saleme é preciso que se faça um breve panorama da arte brasileira nos anos 1980. Passados os ismos (concretismo, neoconcretismo, conceitualismo, Pop) e já assentada no que já poderíamos chamar de contemporaneidade, a arte produzida no Brasil naquela década se livrava paulatinamente desses compromissos estéticos que a história produziu para si mesmo e avançava por um território onde ações individuais se colocavam com mais força do que os coletivos. É claro que havia exceções, excelentes por sinal, como a Casa 7, 3Nós3, A Moreninha, Visorama, entre outros coletivos atuando no país, mas de um modo geral os artistas dessa geração rebatem o sistema de hierarquias e programas estéticos com ceticismo e ironia, em uma tentativa de desmonte da de ideia de progressão em arte. É o momento também em que o boicote à Bienal termina e temos em 1985 a XVIII edição, sob curadoria de Sheila Lerner, com a memorável sala denominada de A Grande Tela. O chamado retorno à pintura que foi tão decantado pela crítica ao longo daquele período tem uma certa validade mas ao mesmo tempo explora pontos que são discutíveis. Diz-se que depois das experimentações com a tecnologia e de uma aproximação da arte produzida no Brasil com a performance e as tendências conceituais e minimalistas, a pintura havia perdido espaço como campo de produção e experimentação. Mas o que dizer de artistas que se dedicaram a pintura não só nos anos 70 mas ao longo de suas vidas como Antonio Dias, Antonio Henrique Amaral, Carlos Vergara, Claudio Tozzi, Eduardo Sued, Ivald Granato, dentre muitos outros? A pintura sempre foi um meio amplamente explorado no país, campo de provas e pesquisas para os artistas. A minha tese é que entre o fim dos anos 1970 e o começo dos 80, muitas escolas de arte no Brasil foram criadas, sejam no campo acadêmico, sejam sem o ranço acadêmico e com um currículo menos ortodoxo, e a pintura, a escultura e o desenho eram ainda disciplinas ou meios amplamente difundidos nessas instituições. Havia raras oportunidades para um aluno ou artista iniciante estudar videoarte ou performance no Brasil naquele período. Concomitante a esse fato, os pintores brasileiros começavam a se aproximar do neo-expressionismo alemão, bastante em voga em meados dos anos 1980. Pintores como Baselitz, Lüpertz, Polke, Richter, Kiefer e A. R. Penck tornam-se rapidamente referências para os brasileiros, em parte também porque começavam a ser vistos na Bienal. Este resgate de uma tendência pessoal, de um filão romântico se via não só nos temas das pinturas mas também nas escolhas dos meios: uma recuperação do trabalho artesanal e o emprego de materiais não usuais à pintura que eram agregados à superfície da tela. Havia uma revalorização da subjetividade, do gesto e da intuição, ao mesmo tempo em que um clima mais soturno, pesado, sombrio se colocava nessas pinturas. Articulemos também o momento político brasileiro que passava pela chamada redemocratização. O movimento das Diretas Já, a aclamação popular pelo fim da ditadura, o clamor das ruas por eleições livres e a volta da democracia e de um pleno regime republicano acabam invadindo a produção da arte nacional naquele momento, e a pintura acaba sendo uma espécie de termômetro dessa tensão.

Em 1985 Marina começa a sua trajetória profissional participando dos seus primeiros salões. E em 1989 faz parte de uma mostra importante denominada Pinturas e Esculturas, no Paço das Artes. Nesse ano pinta a tela Sem título, um díptico de 200 x 300 cm, que condensa o zeitgeist que acabei de descrever. Vemos uma cruz que não se mostra completamente porque está escondida por um véu, pesado e suave ao mesmo tempo, que a faz levitar. O tom esbranquiçado do óleo cria uma atmosfera sublime para a figura mas não nos faz esquecer que há algo de terrível naquela cena. Há violência e paixão sendo processadas e traduzidas na superfície da tela. No mesmo ano um novo díptico. Uma paisagem recortada em tons escuros sobre um fundo amarelo. Não se percebe o que é exatamente. O encosto de uma cadeira? Uma ponte? Uma estrutura arquitetônica? A imagem é acidentada. Não revela, pelo contrário, quer esconder a sua própria aparência ou existência. A artista investe na dissolução das coisas no mundo. A escolha por grandes formatos intensifica essa atmosfera fantasmagórica e misteriosa. A sobreposição de distintas camadas de óleo faz com que as figuras que explora ganhem materialidade, acentuando o aspecto de experimentação do seu trabalho e do próprio momento da pintura naquele tempo. 

É impressionante perceber nesses primeiros anos de pintura uma maturidade ou consistência na sua pesquisa. Permitam-me avançar no tempo e deixar mais claro essa pertinência e coerência no trabalho da artista. Antes de mais nada quero dizer que é um processo intuitivo o trabalho de Marina e que, portanto, de forma alguma ela planejou a sua linha de construção dos trabalhos. Como escrevi anteriormente, existem dois procedimentos na sua obra, que são evidentes e que não necessariamente estão separados ou individualizados. Estes procedimentos se confundem, invadem um ao outro, criando um processo investigativo dos mais instigantes. O primeiro deles é o fato de sua obra revelar ocultando, isto é, o acúmulo de camadas e as diferentes técnicas que são empregadas no trabalho criam uma volumetria que supostamente nos afasta da primeira camada. Contudo, a artista elabora um sistema que não nos faz esquecer dessa imagem indicial e nos leva para um território de novas descobertas, achados e premissas sobre esta imagem que valorizam o seu potencial pictórico. Em Pares, uma série de 4 fotos documentadas pela artista no Regent’s Park em Londres, temos um exemplo dessa exploração paradoxal entre aparência e ausência, que tanto perpassa a sua trajetória. As fotos foram impressas com efeito reticulado, o que permite que dependendo da distância e da perspectiva que o espectador toma em relação à obra, é possível perceber pouco a pouco a passagem entre uma foto que documenta, com uma atmosfera mais densa e silenciosa, uma paisagem bucólica e a aparição de uma massa pictórica que se impõe como uma personagem e não uma ilustração daquela cena. O espectador parece perder o seu senso de orientação, pois uma espécie de turbilhão de cores e formas cria uma outra capacidade de entendimento sobre o real, sobre aquilo que o cerca. Dependendo da posição que tomamos em relação à imagem, apagamos ou revelamos pessoas, árvores, flores, chão ou nuvens. De certa forma, o espectador se coloca como protagonista e autor de uma narrativa. Fotografia e pintura mesclam-se em um mesmo repertório: o de criar situações que subvertem a ordem do plano e daquilo que está diante de nós. Passamos a duvidar sobre o que sempre se constituiu como verdade. 

A estratégia de revelar ocultando também se faz na série O passeio (2013) em que de forma surpreendente, a artista se depara com uma série de árvores, que com a intenção de serem protegidas do frio foram cobertas por sacos de café. A forma como isso aconteceu transmite às árvores encobertas um senso antropomórfico. Como um exército, aquelas pessoas parecem marchar para lugar nenhum. Diante dos fatos políticos que o mundo atravessa de forma grave nesse início de ano, é difícil não pensar na grande massa humana de imigrantes que arriscam suas vidas atravessando os oceanos e mares para terem ao menos a possibilidade de viverem melhor do que nos seus países de origem, massacrados por guerras civis, fome e todo o tipo de desolação. Como corpos ausentes de carne, o passeio de Marina se coloca como um grito surdo e emocionado contra a hipocrisia do mundo.

Em Sábado e Céu que nos protege (ambas as séries são de 2015-16) fotografia e pintura se mesclam ao ponto em que não conseguimos mais identificar com precisão o que é uma e o que é a outra. Os limites foram borrados. As duas séries criam uma autonomia própria, e assim como sua a obra em geral, Marina acentua os parâmetros de ambiguidade daquilo que está diante de nós. A imagem não se revela por completo ou talvez seja a imprecisão ou inexatidão a sua própria natureza. O grau de dramaticidade continua nessas séries, visto que a tinta tende a cercar as pessoas como uma mancha. A natureza é suplantada pela tinta, que acolhe ou ameaça uma espécie de ilha – esse território onde está localizada a imagem das pessoas. Fotografia e pintura juntas, nesses dois casos, colocam em prática uma ideia de montagem: a imagem da família num parque é transferida para uma atmosfera completamente distinta, na qual ficamos confusos entre a beleza cativante das formas construídas pela artista e o aspecto ameaçador de uma mancha pictórica que parece engolir a tudo e a todos. Mas em Céu que nos protege, diferente de Sábado, a camada pictórica aplicada sobre a foto transmite um sentido de aconchego. A ambiguidade talvez tenha uma menor potência nesse caso mas o que não diminui em nada a qualidade da obra, pelo contrário, expõe uma sensibilidade que se alia a tragédia, uma característica que invariavelmente atravessa o seu trabalho.

Volto para a virada dos anos 1980 para os 90 para aprofundar um ponto que tangenciei. O clima de desconforto, incerteza e instabilidade política e econômica durante o governo Collor se propaga pela sociedade e a arte como uma epiderme, que se coloca à prova dos acontecimentos do mundo de forma mais direta não se esquiva desse momento. No plano internacional, há a derrubada do Muro de Berlim e o clima de felicidade se mistura com a incerteza. Não se sabe ao certo como o mundo se comportará depois do fim da Guerra Fria. Há um sentimento de reconstrução envolvido numa atmosfera de dúvida e resignação. Não estou afirmando que o trabalho de Marina é político-ideológico ou vinculado a alguma bandeira, mas, sim, é uma obra que é reflexo do tempo em que é produzida. Uma obra que é produto do seu próprio meio. Contudo, a obra absorve mas passa por cima dessas referências históricas. Ela é definitivamente atemporal. Seu discurso é com o processo de individuação e formação do olhar do espectador. Uma obra que está diretamente vinculada aos medos, anseios, alegrias, desespero ou utopias que regem as nossas vidas. Ela acaba condensando o sentimento do indivíduo sem fazer menção a um determinado fato político ou social, mas sem nos fazer esquecer do momento que vivemos. Em Paisagem com casa (1992) a morada parece ser engolida pela enorme paisagem vermelha que a circunda. Há uma atmosfera solitária sendo construída por meio daquela estrutura mínima e indefesa. Essa escala reduzida da casa ainda é enaltecida pela escolha do grande formato. Chama-me a atenção também o retorno à essa temporalidade artesanal da pintura, distendida na duração lenta de sua execução, manifestando uma nova ética do tempo, antes reduzida pelos vários processos ligados à arte conceitual ou minimal que pairaram no Brasil nos anos 1970. 

Marina constrói um processo muito próprio. Não a vejo próxima dos artistas que participaram de “Como vai você, geração 80?”, a icônica exposição realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage em 1984, reunindo artistas, e mais significativamente pintores, especialmente do Rio mas também de São Paulo. Não se aproxima do rock, do escárnio ou do deboche como alguns desses pintores o fizeram. Sua aproximação com o neoexpressionismo, por exemplo, é bem distinta da que fez Cristina Canale. Sua experimentação se difere da de Leda Catunda, que investe na materialidade do suporte. Não tem o deboche e uma certa linguagem Pop que Leonilson e Zerbini utilizaram. Não se aproxima da festividade abstrato-expressionista de Jorge Guinle Filho nem da sátira e de certos motivos grotescos que habitavam as telas dos integrantes da Casa 7. Interessa a Marina o aparecimento de formas que constituem o seu mundo, muito próprio, e que se dão por meio da exploração da tinta. Estas formas são escorrimentos, vultos, poças e tramas que são desdobramentos de sua pintura. Em uma tela de 1994 (Itaucultural) nota-se a sobreposição de tons de vermelho que criam uma espécie de bruma para aquela superfície. A paisagem está dissolvida, pois não a percebemos com clareza. E é esse enigma que, suspeito, parece lhe interessar. Uma revelação que se dá aos poucos, no encontro lento e permanente entre obra e espectador. 

Em Sem título (1993) a artista cria um sentido ilusório através da densidade de óleo que aplica na tela fazendo com que figura e fundo se alternem em suas posições. A paisagem parece engolir aquele que a vê. Esse mundo próprio de Marina, ao menos nos 10 primeiros anos de sua produção, se faz por meio de uma paisagem trágica que nega um otimismo da cor. O dado decorativo, matissiano das cores é subtraído pela construção rítmica de uma atmosfera mergulhada nas tendências neo-expressionistas. Transparece nessas pinturas uma ideia de indivíduo mergulhado em suas incertezas; um sujeito que não planeja o seu futuro porque a imprevisibilidade do presente não o permite sonhar com um mundo menos trágico. Já em O trançador (1995) é impressionante o fato de que um monocromo pode revelar sucessivas histórias e nuances. A forma como as pinceladas agem, construindo portas, divisões, estruturas, módulos, separações, compartimentando o espaço deixa claro que essa escolha de Marina, quando é o caso, por uma economia de gestos de modo algum resulta em uma estrutura planar e simples. É preciso constantemente desvendar esse espaço de cor-luz. Uma cor que vibra, quer penetrar e fazer parte do espaço e conclama a nossa atenção para que investiguemos a fundo, em todos os seus detalhes, esse espaço enigmático. O vermelho aqui não é paixão nem violência mas mistério, um incessante espaço de descobertas que é oferecido ao sujeito. Por outro lado, em Céu de almas, do mesmo ano, o uso condensado de gestos edifica outra atmosfera. O céu – a redenção – guarda um cenário trágico e desconfortável. O uso do azul, e seus diferentes tons, e do vermelho criam um ambiente sinistro e pouco acolhedor. São situações como essas que fazem o trabalho de Marina ser inclassificável; é impossível guarda-lo dentro de uma gaveta e apontar com toda convicção que seu trabalho segue tal escola. Sua obra tem um compromisso com as formas de se ver, compreender e relacionar com o mundo.

Em Três pessoas e Duas pessoas (ambas de 1999) os corpos das figuras parecem se desfazer. Eles estão ausentes de carnalidade. Estão lá o desencanto, o abandono, o silêncio, a solidão e o desespero. A tragédia é o próprio acontecimento da vida. Parece não restar mais nada no mundo a não ser a própria consciência da sua densidade existencial. Estabeleço uma proximidade dessa obra com a série “Tudo te é falso e inútil” (c. 1992) de Iberê Camargo, na qual as figuras exploradas pelo artista possuem um olhar perdido que não consegue encarar o mundo e por conseguinte o espectador. Como nas peças de Beckett, o tempo não se esgota, pois é como se aquelas figuras estivessem condicionadas a uma incerteza da espera. Envoltas numa atmosfera angustiante, as figuras simplesmente se deixam ficar, na expectativa, contrária a todos os sinais, de que algo novo se produza. Voltando às duas telas de Marina, percebam que são todas figuras sem rosto, ocultas pelas sombras que a densidade e volumetria do óleo produzem. Interessante perceber também nesse momento que a figura humana ou a alusão à sua presença começa a adentrar na sua pintura. A paisagem começa a ser invadida por esses personagens. E a associação com Iberê também se faz com a presença dessas figuras solitárias, sombrias e disformes.

Essa pesquisa pelo material, explorando o seu caráter de densidade encontra uma maturidade na série Covas rasas (1999). Sob o acúmulo de folhas de jornal constrói-se uma espécie de superfície ou tela para que o óleo de linhaça, a acrílica e pigmentos ajam em conjunto provocando um movimento duplo: simultaneamente há o surgimento de uma volumetria que torna a matéria espessa e próxima de uma pele, percebemos ali as ranhuras e as marcas daquela substância, mas também há uma força que engendra uma ilusão de que essa mancha falsamente viscosa tem profundidade, algo como se estivesse corroendo aquele acúmulo de papel. É interessante perceber a força que, suspeito, Iberê e, por que não, Tàpies e a escola informal tiveram momentaneamente na obra de Marina. A tinta não é só cor mas a própria matéria, trágica, envolvente e assustadoramente real. Esta investigação tem uma origem dois anos antes com a série de 24 telas intitulada Poças. Nela a artista explora, ainda que tendo a tela como suporte, as relações que aprofundará em Covas: através do acúmulo de óleo e de sua própria materialidade, Marina estudou as relações entre figura e fundo, profundidade e volume, enfim, a construção de uma natureza ilusionista para a pintura, chegando a um quase objeto nas Covas rasas. Notem também em Poças os riscos ou estrias escavadas na superfície e a antecipação para que o chamei de pele nas Covas.

Mas a segunda metade dos anos 1990 também representa uma variação na sua paleta. Em Dois lagos (1995), as cores se tornam mais vibrantes e menos dramáticas. A cor delimita os lagos e transmite uma leveza à experiência de admirá-los. O peso de um aspecto sombrio é deixado de lado, e a cor cria uma espacialidade etérea para os lagos. Parecem flutuar sobre o plano, simultaneamente ao fato de que se desprendem da superfície e almejam o espaço. Em Gotas (1999) e Chuva (1999), o aspecto etéreo permanece. Gotas ou água em movimento acendem uma centelha imaginativa em nós de que elas não têm peso, e essa imagem nos ajuda a refletir que a suavidade e a delicadeza começam a invadir o trabalho de Marina. Uma cor simples, silenciosa, às vezes confundindo-se com a alegria e em outros momentos com a tragédia, mas que sem dúvida alguma não precisa de muito barulho para se fazer presente. É uma pintura translúcida, pois essa construção líquida faz com que os planos pictóricos atravessem uns aos outros. São formas sem peso, parecendo não ter sustentação ao flanar pelo plano, fabricando outro sentido de gravidade. Dois anos antes, a artista realiza o desenho O passeio, no qual fundem-se várias situações que estavam sendo exploradas pela artista nos seus primeiros 10 anos de pesquisa, especialmente a solidão, o disforme e uma certa qualidade de tragédia, mas também atributos que estavam sendo experimentados naquele final de década, como a ampliação da paleta com tons mais suaves e uma tela em formato menor. Este tom intimista da pintura é perfeitamente visível em Garrafas (2001). Nos aproximamos ainda de vultos (das garrafas). A linha demarca a área dos objetos, que são translúcidos. Podem ser atravessados pelo olhar do espectador. Continuamos a dissecar objetos, paisagens, figuras que são oferecidas pela artista ao nosso olhar. Há um desejo também em problematizar essa vida ordinária. Perceber esses objetos como formas vivas, atuantes, personagens nesse espaço cênico que é a tela.

O acento trágico permanece nessa mudança de paleta como é o caso de Assento/abismo (2003). No primeiro plano percebe-se o encosto de uma cadeira que por meio de seus intervalos avistamos uma montanha e, entre eles, o abismo. Com tons esverdeados a pintura ainda persegue esse estado de atenção e de um acontecimento catastrófico. Ela parece assinalar que algo funesto acontecerá em breve. Há um tom de suspense embora a obra possa perfeitamente ser reconhecida como uma pintura de paisagem, com uma perspectiva um tanto fora do comum, já que a natureza é vista de forma parcial e oblíqua. Penso que ao adotar esse caráter quase teatral para o espaço pictórico, pelo menos em parte de suas obras, Marina articula não só novos pontos de fuga e perspectiva para pintura assim como a aproxima de outras linguagens artísticas, tornando-a viva e atual.

Entre 2004 e 2005 Marina produz 4 telas que reivindicam uma qualidade do ar à sua produção. Teto e Sem chão (ambas de 2004) e Almas voadoras e Céu rosa com nuvens muito pesadas (ambas de 2005) não possuem peso. O diálogo direto com a natureza e o título dessas obras criam uma associação nominativa e fenomenológica entre leveza e fuga para o espaço. Nesse deslocamento entre ser e conter ar, essas pinturas nos interrogam sobre a sua aparência ao mesmo tempo em que fundam um espaço sem gravidade. As imagens contidas nessas obras gravitam em torno de uma órbita que nos leva a pensar numa suspensão de tempo. São situações intervalares: situam-se entre a realidade do mundo objetivo e um devaneio ou utopia, onde a ordem das coisas obedece a uma nova lei. Faço menção também a Céu inverso (2001), uma obra que antecedeu essas questões e que já apontava esse desejo de Marina em reavaliar as qualidades, convicções e durações do mundo. O céu é o chão e vice-versa. Pôr as certezas em dúvida. E existe “função” mais nobre para a arte do que essa? Reavaliarmos aquilo que está diante nós. Sem dúvida, são pinturas que evocam um constante trânsito assim como é a própria natureza. É perspicaz notar que nesse conjunto de telas há um lugar para o silêncio e a contemplação ao invés da evocação de um mundo de excessos, onde o elogio ao ruído parece nos acompanhar por todo o tempo. Em um período de saturação de informação, Marina desacelera o tempo por meio de uma sutil economia e de uma escala intimista. Nesse movimento sem truques, somos ensinados a duvidar de nossa percepção e convocados a emprestar o nosso corpo ao mundo.

Em 2006 a artista inicia a série Liquid Paper. Tanto na tela que recebe o título dessa série quanto em Atados e Praça (ambos de 2008), através de sobreposições de camadas de tinta a artista vai corrigindo, modificando, mudando os elementos de lugar, apagando pessoas e imagens na paisagem. O apagamento aqui não significa uma ação que se encerra mas um refazer-se. As figuras se transformam em sombras, vultos, fantasmas. Todos estão ocultos, não querem ser identificados ou reconhecidos. Vagam pela paisagem como anônimos. Não possuem corpo, apenas carne. Em Atados, o casal se mantém unido diante de uma paisagem que se confunde com os seus próprios vultos. Não há esperança ou saída nessas 3 pinturas. Contudo, ainda em Atados e também em Praça a escolha da paleta e o modo, portanto, como a paisagem e o espaço são construídos nos remete para um imaginário de docilidade, especialmente em Atados, por conta do universo angelical e meigo que o rosa nos alude. Em Praça, só resta à figura mais à esquerda ser vulto. Seu “corpo” é translúcido, atravessado pela paisagem. Corpo e mundo se fundem numa só entidade. Todas estas figuras parecem esperar pelo inevitável: o seu fim. Estão se despedindo do mundo ou vagam por ele como se o seu compromisso com essa causa fosse regido pela própria eternidade.

Por trás disso tudo (2009) retoma essa conduta. Há um estado de liquefação que se faz presente. Rostos encobertos por sombras. Desse palco árido, vazio, estéril, nada se pode retirar ou acrescentar: a espacialidade é absolutamente muda. Tudo se passa no movimento mais próximo possível da imobilidade. Diante dessa atmosfera, nos ocorre perguntar: o que está acontecendo, se nada acontece? Nessa pintura, toda a ação dramática se dá de forma vagarosa, desacelerada, reduzida ao quase imperceptível desaparecimento – ou derretimento? – das figuras. A estrutura que sustenta as portas por onde saem as figuras parece estar se desfazendo, corroendo. Tudo parece se dissolver, se esvair. É o eterno retorno de um fim… ou de um começo.

A imagem da dissolução ou da dissipação cria uma conexão, guardadas as suas especificidades, com duas telas: Fortuna (2009) e Pendente (2010). Na primeira, nuvens, imagem recorrente na obra de Marina, despejam centelhas douradas que atravessam o solo, construído e limitado por um tom semelhante. É a imagem da transposição, de um território fluído e que de forma lenta vai sendo constantemente preenchido, configurando um espaço que simbolicamente vamos tateando e reconhecendo. Já em Pendente, as vertiginosas pinceladas transmitem uma sensação de permanente construção de formas que se assemelham a tramas e tecidos. Uma sobreposição de sensações táteis que dão a essa superfície um caráter orgânico. Perceber as diferenças e o estranhamento que nos é colocado por essas pinturas nos permite lidar com algumas – supostas – imposições que são trazidas para o nosso dia-a-dia. Reconhecer que o mundo é regido pela diferença e vivermos de forma integrada dentro dessa perspectiva é o que pode haver de mais salutar para o indivíduo. E a arte seguramente contribui para esse processo. 

Um procedimento semelhante ao de Liquid Paper será efetuado cerca de 10 anos depois na série de fotografias intitulada As verdades (2015). Nela, o apagamento de certas estruturas das traves – que inversamente se colocam como construção de espaços – cria uma narrativa, que se faz aberta ou flexível para o espectador. Nessa série fotográfica, observamos que a imagem inicial de duas traves de futebol feitas com estacas de madeira, daquelas fabricadas provisoriamente na beira do mar, é transformada paulatinamente, através de uma construção pictórica, em uma espécie de casa. Os vazios (a ausência, a falta ou o débito) das duas traves se veem preenchidos ao longo da sequência fotográfica, transformando uma gambiarra ou ainda uma paisagem prosaica e que foi capturada pela artista de forma totalmente ocasional, em um arquétipo de abrigo ou morada. Como em um filme, peça, livro ou qualquer suporte narrativo, somos guiados a projetar uma história, um acontecimento que se faz de forma incessante e envolvente. É o caso também de Garranchos (2015), um políptico em que imagens recortadas de galhos de uma mesma árvore compõem simbolicamente uma dança. A disposição das imagens – que nunca obedece a um padrão, isto é, o políptico pode ser montado das formas mais diversas – e a maneira intimista e poética como os galhos foram documentados geram a representação de um movimento circular que remete diretamente à um baile. A sombra do galho contra a luz da cidade reforça o tom celebratório do corpo em deslocamento. Mais uma vez, elementos da natureza se confundem com aspectos humanos em sua obra.

Gosto de imaginar que o seu trabalho é composto de diversas brumas, véus ou camadas. Como camadas de uma pele, as pinceladas vão compondo um corpo. Percebemos as sutilezas e a textura dessa superfície que pouco a pouco se faz carne também. Em Estrelada e Confete (ambas de 2008) estão presentes seguidas camadas de óleo que agem como transparências se interpondo e se deslocando, criando por vezes um aspecto aveludado para essas pinturas, por outras uma aspereza, ou ainda uma sensação tátil mais fluída e etérea. Novamente o arquétipo do ar se faz presente. As formas abandonam o seu peso, flanam, flutuam pelo ar constituindo uma realidade paralela à gravidade que nos habita. Elas têm um compromisso com a leveza, se fazem pele, e como objetos translúcidos que são nos obrigam a olhar por através das coisas. Nos permitir que vejamos textura, sensações, corpos, peles na pintura é tornar os nossos olhos mais sensíveis para o mundo. É diminuir a dureza e a incompreensão que nos cercam e nos fazem ficar, mesmo que involuntariamente, cegos às atrocidades do cotidiano.

Sua pintura possui uma estrutura de recortes, paisagens ou formas díspares, que ao se encontrarem, se avizinharem, criam uma narrativa. Em Céu rosa despencando sobre paisagem (2008) e Céu despencando (2009), a imagem do céu perdendo a sua estabilidade e enfrentado a sua própria queda livre nos conecta a uma situação de catástrofe, impossibilidade, ruína e apocalipse. Tudo se encontra fora da ordem natural das coisas. Mas por outro lado há uma docilidade e suavidade na gestualidade das pinceladas e na própria construção do, digamos, cenário dessas pinturas. É como se duas forças opostas estivessem interagindo no mesmo espaço. E é nesse ponto que quero chegar: a pintura de Marina atua como um encontro de ilhas que ao firmarem proximidades constroem afinidades eletivas. Figura e fundo e luz e sombra estão constantemente negociando seus espaços, criando seus ritmos e (des)aparições. Ao longo de sua trajetória percebemos que há um senso de que a pintura não está “pronta”. E é essa a natureza e a principal qualidade da obra de Marina: o eterno desafio de se refazer a todo o instante, de exibir a sua própria inconformidade e o compromisso com a mutabilidade. Sejam nas pinturas ou nas fotos, sobressai um ambiente de silêncio e melancolia. E é a introdução de pequenos gestos; a harmonia entre fotografia e pintura construindo um diálogo de intersecção e narrativa poética coeso; e, uma estrutura – aparentemente – em débito que logra um repertório de fabricações sutis e intensas que fazem da obra de Marina Saleme uma pesquisa singular.

Na série Únicas (2010) continua a pesquisa por revelar aos poucos mas continuamente essas diversas camadas que constituem algo que poderíamos nomear como uma epiderme. A artista investe nessa tessitura translúcida das camadas permitindo que vejamos, através delas, o interior desse “corpo” transmutado em tela. Percebam que há furos, vazios, ilhas, transposições, veias abertas para que essas pinturas logo se transformem em disparadores de um campo de possibilidades interpretativas que permitem ao sujeito ser o dono de suas próprias tomadas de posição e crie suas narrativas. É interessante perceber que a matéria pictórica dessas pinturas não apresenta nenhuma espessura. Na tensão revelada entre figura e fundo, o olhar do espectador é levado a percorrer todas as imagens, acompanhando a exuberância gráfica e cromática presente nas obras. Arriscaria a dizer que a sua pintura se interessa pelos motivos ornamentais de Guignard sem se aproximar, sem dúvida alguma, de uma pintura com fatura decorativa, numa acepção pejorativa. O ornamento de Guignard se faz presente em Marina mais fortemente através das suas chamadas “paisagens imaginantes”. Para além de colocar as cidades, topografia e objetos em suspensão, retirando o peso e fazendo com que todos flutuem numa paisagem inventada, Guignard constrói um mundo nublado e tristonho. E essa atmosfera melancólica, produzida em meio a esse caráter decorativo e fantástico, é que estabelece um ponto de contato pertinente e fluído com a pintura de Marina. Uma diferença importante a ser dita, especialmente envolvendo essa série de Marina e o diálogo com Guignard, é que a paleta e a perspectiva adotadas pela artista fazem com que o olhar do sujeito se aproxime da obra ao ponto em que ele toma contato com as “vísceras” daquela pintura. É uma aproximação real e imediata. Não se trata de uma paisagem para ser admirada em seu esplendor mas uma pintura que quer revelar a sua intimidade, os seus pormenores. Por isso a imagem de uma estrutura em aberto.

Parece-me que uma certa paisagem monolítica sobre o Brasil tem sido sistematicamente desenvolvida no exterior: o país de uma natureza selvagem e deslumbrante adornado por curvas sensuais – entendam isso em todos os aspectos – e habitado por um povo alegre e desinibido. Até que ponto isso é mito ou verdade sobre nós? Haveria uma certeza sobre a identidade de um povo a ponto de construirmos sua personalidade? Gosto de pensar que a arte feita no Brasil foge de seus estereótipos e exibe outras referências sobre a paisagem e o sujeito que aqui vivem: há uma atmosfera densa, ruidosa, inacabada, pessimista, que convive lado a lado com todo o (suposto) otimismo embutido na tríade que de certa forma fundamentou a cultura brasileira no pós-guerra. E é aqui que a obra de Marina dialoga com essa paisagem menos solar e nos permite perceber a diversidade do mundo. Em Sem título (2013) temos uma figura soturna, aparentemente feminina, sem rosto, dispersa numa atmosfera fantasmagórica e que parece se diluir numa paisagem caótica e árida. O vermelho que sustenta e torna visível uma estrutura na qual a figura se apoia reforça esse tom de sofrimento. Parece-me não haver saída, pois a figura alerta para a sua própria tragédia. O cenário está congelado no seu próprio tempo. Há uma esperança no porvir ao mesmo tempo em que todos (a figura e o cenário) parecem conformados com os seus estados de apreensão e temor. Voltando à questão da identidade, a obra de Marina não fala sobre o Brasil. Contudo, é claro, falamos de uma artista nascida nesse país, que absorve questões técnicas, sociais, políticas elaboradas por aqui, mas que devolve ao sujeito por meio de sua obra uma paisagem transnacional, atemporal e que discute, reflete e nos aproxima de questões essenciais para a nossa formação cultural, permitindo que nos tornemos mais sensíveis ao que acontece ao nosso redor.

Ressalto o caráter de vulnerabilidade de muitas figuras que são trazidas por Marina. Em Garotas (2013), por exemplo, vislumbramos as costas de três corpos (deduzimos que sejam moças por conta do título) envoltos em tecidos que os conchegam e apreciando a paisagem ao seu redor. Há uma atmosfera melancólica nessa pintura e mais: tudo é vulnerável. As garotas parecem se proteger dos seus próprios estados de fragilidade. De costas para o espectador, não querem encarar o mundo, pois resguardam-se, escondem-se ocultado seus rostos. A paisagem se faz ao longe, como se todo o esforço e tempo dedicado não fossem suficientes para que elas alcancem o que desejam: suspeito que seja uma investida em direção a paisagem. A escolha por tons sóbrios e cores frias, além da escala da pintura (200×160 cm), alternam a nossa percepção entre o sublime, enfatizando o trágico, e uma aparição gélida das figuras. Há algo de incômodo nessa aparente simplicidade. A aura de perda que atravessa a pintura incrivelmente cria uma relação de empatia com o sujeito. Nos sentimos solidarizados com as garotas. Repartimos a mesma dor, angústia e esperança.

Em 2012 produz As descabeladas. Numa série contendo 200 obras a artista articula um diálogo engenhoso entre pintura e desenho. Cada uma medindo 40×30 cm, existe uma relação sutil e íntima com a imagem e mais particularmente com o universo feminino. Esta série é uma experiência de síntese da sua obra. Temas que aparecem com recorrência e que são vitais para o entendimento sobre a coerência em seu trabalho estão lá: a morte, o fim, o refazer-se, o abandono, a solidão, a vulnerabilidade, o temor, o amor e a vertigem. Com tons sóbrios, o que prevalece nessa série potente é uma sutileza no gesto e na aparição das formas, e por isso evoco a aparição do desenho. Quando colocadas lado a lado, como um grande painel, Descabeladas age como uma pintura de fotogramas. Sua escala e sua dinâmica guardam consigo uma relação com o cinema, tanto pela força hipnótica da imagem quanto pela estrutura segundo a qual se organiza – sequências nascidas por montagens, idas e vindas em travelling e cortes. Há uma sucessão de janelas condensando os limites da imagem que se sentem desconfortáveis no espaço delimitado pelo plano. Ademais, são pinturas da memória universal que desejam e agem por transbordamento. Há um sentimento por parte do sujeito de compaixão com as situações que são reveladas por Marina. Percorrendo a parede, a série leva o sujeito a se mover de um set ao outro, tal como de uma reminiscência a outra.

As pinturas mais recentes da artista investem na transparência e nas imagens de um universo que engloba o céu e as nuvens como referentes. Em Purple Clouds (2015) várias camadas se intercalam. Além da imagem da nuvem em tons arroxeados, em primeiro plano, que transmite uma sensação dela estar despencando por conta da tinta que forma a sua própria massa estar escorrendo pela tela, visualizamos, em segundo plano, na parte esquerda da tela arabescos em formato vertical que se confundem com o escorrimento da nuvem. Na parte direita da pintura, um aglomerado de tinta, em tom mais escuro que os arabescos, que poderia ser identificado como uma série de manchas. A pintura continua lidando com as aparências, camuflagens, aparições e apagamentos que marcam a trajetória de Marina. Gosto de pensar mais uma vez numa relação amistosa entre cores aparentemente tão dissonantes. No caso, o dourado e o roxo. Lado a lado, elas criam essa atmosfera trágica, simbólica e ao mesmo tempo humana. Em Céu com ganchos, do mesmo ano, e Céu (2015-16) chamo a atenção para a forma em como a nuvem se transforma numa matéria espessa e densa. Ela é o coração das duas pinturas, pois concentra a energia que dispende lentamente, escorrendo enquanto tinta e em pequenos lastros, pela tela. A nuvem é um corpo e é por essa metáfora que percorro esse grupo de pinturas de Marina. Lentamente esse corpo se desfaz à medida em que perde matéria. Portanto, há um tempo sendo qualificado, visto, construído e experimentado por Marina. Não é o tempo-mecânico – do dia-a-dia, aquele em que nos tornamos máquinas ou prisioneiros de nossa própria rotina – mas o tempo-duração. Esta expressão é cunhada por Merleau-Ponty no ensaio O olho e o espírito: “Pensar é ensaiar, operar, transformar, sob a única reserva de um controle experimental onde só intervêm fenômenos altamente ‘trabalhados’, e que os nossos aparelhos produzem, em vez de registrá-los” . Um tempo que é engendrado pela nossa vontade, cunhado por sutilezas, diferenças de escalas e importâncias frente ao que definimos como sendo natural. É a possibilidade de estender, congelar ou retrair o tempo por meio da experiência que criamos com o Outro. A forma como o tempo é operado nas suas pinturas converte-se assumidamente lento, trágico, pesado e aqui está a experiência mor da obra: a noção de duração que ela constrói em conjunto com o projeto de individuação da experiência. Eis o que poderíamos chamar de vivência exclusiva do instante.

Revelações e ausências: um ato contínuo

Felipe Scovino
Galeria Luisa Strina, 2016

Existem dois procedimentos no trabalho de Marina Saleme que são evidentes nessa exposição e que não necessariamente estão separados ou individualizados. Tais procedimentos se confundem, invadem-se mutualmente, criando um processo investigativo dos mais instigantes. O primeiro deles é o fato de sua obra revelar ocultando, isto é, o acúmulo de camadas e as diferentes técnicas que são empregadas no trabalho criam uma volumetria que supostamente nos afasta da primeira camada. Contudo, a artista elabora um sistema que não nos deixa esquecer dessa imagem inicial, levando-nos a um território de novas descobertas, achados e premissas sobre ela que nos faz valorizar seu potencial pictórico e – por que não? – mágico.

Em Pares, uma série de quatro fotos documentadas pela artista no Regent’s Park em Londres, temos um exemplo dessa exploração paradoxal entre aparência e ausência que tanto perpassa sua trajetória. As fotos foram impressas com efeito reticulado, permitindo que, a depender da distância e da perspectiva que o espectador toma em relação à obra, é possível perceber gradativamente a passagem entre uma foto que documenta (com uma atmosfera mais densa e silenciosa), uma paisagem bucólica e finalmente a aparição de uma massa pictórica que se impõe como uma personagem e não uma ilustração daquela cena. O espectador parece perder seu senso de orientação, pois uma espécie de turbilhão de cores e formas cria uma outra capacidade de entendimento sobre o real, sobre aquilo que o cerca. Conforme a posição em relação à imagem, o espectador pode apagar ou revelar personagens, árvores, flores, chão ou nuvens. De certa forma, ele se coloca como protagonista e autor de uma narrativa.

Fotografia e pintura mesclam-se em um mesmo repertório: o de criação de situações capazes de subverter a ordem do plano e daquilo que está diante de nós. Passamos a duvidar sobre o que sempre se constituiu como verdade. A estratégia de revelar ocultando também está presente na série O passeio, de 2013, em que, de forma surpreendente, a artista se depara com uma série de árvores: com a intenção de serem protegidas do frio, estas foram cobertas por sacos de café. O modo como foi feito esse procedimento transmite às árvores encobertas um valor altamente antropomórfico. Remetendo, de certa forma, à disposição dos soldados de um exército, aquelas “pessoas” parecem marchar a esmo. Diante dos graves fatos políticos que o mundo atravessava naquele início de ano, é difícil não se lembrar da grande massa humana de imigrantes que arriscam suas vidas cruzando mares e oceanos com a esperança de uma vida melhor do que em seus países de origem, onde são massacrados por guerras civis, fome e todo tipo de desolação. Como corpos ausentes de carne, o passeio de Marina se coloca como um grito surdo e emocionado contra a hipocrisia do mundo.

As pinturas de Marina – e também uma série de fotografias intitulada As verdades – revelam outro procedimento: a economia de gestos investe na construção de uma narrativa que se faz aberta ou flexível para o espectador. Nessa série fotográfica, observamos que a imagem inicial de duas traves de futebol feitas com estacas de madeira (como aquelas fabricadas provisoriamente à beira do mar), é transformada paulatinamente, por meio de uma construção pictórica, em uma espécie de casa. Os vazios (a ausência, a falta ou o débito) das duas traves se veem preenchidos ao longo da sequência fotográfica, transformando uma gambiarra ou ainda uma paisagem prosaica – capturada pela artista de forma totalmente ocasional – em um arquétipo de abrigo ou morada. Como em um filme, peça, livro ou qualquer suporte narrativo, somos guiados a projetar uma história, um acontecimento que se faz de forma incessante e envolvente. É também o caso de Garranchos, um políptico em que imagens recortadas de galhos de uma mesma árvore compõem simbolicamente uma dança. A disposição das imagens – que nunca obedece a um padrão, isto é, o políptico pode ser montado das formas mais diversas – e a maneira intimista e poética como os galhos foram documentados geram a representação de um movimento circular que remete diretamente a um baile. A sombra do galho contra a luz da cidade reforça um tom de celebração do corpo em deslocamento. Mais uma vez, elementos da natureza se confundem com aspectos humanos.

É curioso pensar que a captura das imagens pela fotografia quase sempre coloca Marina em uma posição de “turista acidental”. E é esta característica do acidente, do acaso ou do aleatório que, parece-me, move sua pintura. Seus trabalhos possuem uma aparência de recortes, paisagens ou formas díspares que, ao se encontrarem, avizinhando-se, acabam formatando uma sequência típica da narração. Trata-se de um encontro de ilhas, territórios semânticos, que firmam proximidades e consequentemente constroem afinidades eletivas. Especialmente nos dípticos aqui expostos o que se revela é um constante atrito e conformidade entre as cores e formas construídas. Figura e fundo, luz e sombra estão constantemente negociando espaços, criando ritmos e (des)aparições. É possível perceber nesse corpo de trabalhos a ocorrência de um senso que aponta para uma característica de imprecisão, no sentido de não estar finalizado. Essa a natureza é a principal qualidade da obra de Marina: o eterno desafio de se refazer a todo o instante, de exibir sua própria inconformidade e o compromisso com a mutabilidade. No conjunto de pinturas que formam um painel, observamos a presença da imagem de uma mulher e uma criança sentadas como se estivessem brincando ou interagindo – a mesma que aparece em Pares.

Tanto em suas fotos quanto em suas pinturas sobressai um ambiente de silêncio e melancolia. E é a introdução de pequenos gestos, a harmonia entre fotografia e pintura construindo um diálogo de intersecção e narrativa poética coesa, assim como uma estrutura “aparentemente” em débito, logrando um repertório de fabricações sutis e intensas, que fazem da obra de Marina Saleme uma pesquisa única.        ­