Pintura a dentro

Ana Maria Belluzzo

…pintura a dentro

A poética de Marina Saleme nasce de grande intimidade com a pintura enquanto matéria em transformação, que se altera, se adensa, se desmancha pela mão do artista. Se o encontro de uma cor pressupõe um acordo de unidade para obtenção de uma simples tinta – óleo mais grosso, mais terebentina -, o que dizer das ilimitadas possibilidades oferecidas num campo de obras, quando a tela já não se impõe como totalidade fechada, e sobrevive como espaço aberto à experimentação?

Marina instala-se nos interstícios da pintura, a espreita dos precisos momentos em que possa tocar, alterar partículas plásticas sujeitas às forças configuradoras que fazem do universo da pintura, um universo próprio. Trabalha sem voluntarismo. Desdenha da vocação idealista que conduz um projeto em determinada direção e move o trabalho por uma intenção clara. Comanda o processo, passo a passo, num campo produtivo aberto às decisões no presente. Por idas e vindas. No vai e vem, que nega a noção de projeto.

Indefinidamente plástica, maleável, Marina Saleme se deixa estar, sem pressa, entre virtualidades e limites da matéria pictórica. Desde a década de 90 mostra-se propensa a explorar a pintura, sem se ater ao mundo visível, retiniano, movida pelo desejo de ir na direção de outro infinito desconhecido.

No ímpeto de abraçar a tela por inteiro ela explora, de início, uma técnica homogênea, fundada na matéria que lhe dá consistência. Mostra-se cativada por veículos imateriais da cor (próximos da nevoa, por exemplo). O espaço plástico, criado a partir do trabalho pictural, é espaço em transformação, sob intervenção das do jogo das camadas de tinta entretido pelas cores.

Negando a superfície plana do quadro, Marina dá proemiência à espessura da tela. É mestra na milenar cozinha da história da pintura, sabe ascender clarões, obscurecer tramas, fazer entes vagarem num espaço e, até mesmo, sugerir seu desaparecimento.

Entregue às possibilidades de transformar um quadro, demora a se decidir por onde avançar, por onde retornar, enquanto as camadas de tinta dão lugar ao intrincado tecido, que abisma a noção de superfície. Em pinturas sem objeto, o jogo de interpenetração de cores não se resolve na superfície pictural, ainda que ocorra por meio dela. Acontecimentos de passagem pela superfície da tela desnudam sensações e afetos. É a artista se movendo pela matéria indeterminada, pela cor pulsante.

Naquelas telas em que o tratamento da matéria pictórica é mais homogêneo, chamam atenção as qualidades do material trabalhado. Das trocas entre artista e quadro, muito procede de propriedades que a matéria suscita no corpo. A sensação de embaçado que correspondente à opacidade de visão, as presenças que se diluem na fluidez do campo, a ocorrência impalpável, apenas rastreada na superfície. Lançada por inteiro ao trabalho, em resposta às diferentes exigências do corpo e do espírito, ela dará lugar a uma crescente heterogeneidade formal.

Num óleo de 1997, os traços passam pelo campo, deixando rastros e desmanchando pre-visões. Presenças transitórias, não se prendem aos hábitos do olhar. Escapam. Fogem. Decorrem, como as nuvens, de circunstâncias imponderáveis do ambiente, que levam massas a se desmancharem. Marina Saleme põe em obra a poética do transitório. Deitado (nome atribuído ao referido quadro) alerta para a incidência da palavra na recepção da imagem e conduz a atenção para a disposição horizontal do espaço plástico. A indefinição de um sujeito na referida posição favorece o sentido em falta.

A abertura para a função da palavra é um dos indicadores de que Marina não pretende conter a tela em si mesma. Poetiza. Dá saltos associativos. Aproxima-se de experiências fundamentais do espaço, se assim podemos dizer com relação aos vetores “quase horizontais”, “quase verticais,” e mesmo ao seu manejo do peso/leveza dos corpos mobilizados em espaços sem gravidade.

Marina habita o universo da própria pintura, em que a tela se torna espaço e se oferece a um traçado preliminar a ser atingido por gestos sucessivos. Não se entenda aqui a gestualidade do expressionismo abstrato – cujos golpes fazem da tela virgem o palco da ação. No curso das transformações, surgem atos de comedimento e de contenção, ao lado de cortes violentos, riscos vigoros, traçados rápidos.

Tampouco, a imeditez dos gestos de Marina sobre a tela levam a supor sua adesão à expressão expontânea, quando ela se detem na incansável busca de espacializar pela cor. Seja apurando efeitos da sobreposição cromática ou dedicada à magia da cor em inusitados encontros.

A intenção de seu gesto compartilha até mesmo forças da gravidade para dar lugar ao escorrido da cor líquida no quadro. Gosta da aparência informal, mantem marcas provisórias do processo desenrolado. Lidando com a profundidade do campo, chega a lançar mão de recursos inesperados quando se trata de trazer algo mais próximo ou de levá-lo para traz. Que tal traves desenhadas para que vultos não pertençam a uma única dimensão do campo? e uma sorte de “selo”, aposto em determinado ponto da pintura para balizar profundidades? Adota simples soluções de desenho, do mesmo modo que faz uso não convencional dos meios de trabalho.

Aparentemente expontâneos, os quadros advem de fundamentos introjectados. O que se poderia dizer: janelas abertas para dentro. Estas telas não pedem para ser lidas, fazem indagar como se enredam e nos levam à procura de seus mistérios.

No quadro que se forma e se transforma, a matéria artística trabalhada se aproxima de fenômenos da natureza (físicos). Traz sensação de atmosfera nublada, faz pressentir riscos, nuvens tempestuosas. E se a densidade da tinta cria invisibilidade em campo cerrado, mais o corpo tateia do que o olho que distingue.

O espaço plástico suscita atmosferas noturnas, favorece a sensação de aparecimentos indeterminados – um brilho ou intermitentes feixes de luz, a irrupção de clarões voláteis-, ora figuras flutuantes. Tais ambiguidades estão presentes no óleo chamado Tres pessoas, 1999, que pertence a coleção da Pinacoteca de SP, em que há vultos oscilando aquem e além da massa. Marina desmancha certezas, borra a evidência de limites dos corpos, mesclando “fundo e figura “, se pudermos usar, aqui, termos que se aplicam à convenções que ela procura evitar.

Uma das formas que Marina encontrou para sustentar acontecimentos no interior da pintura empresta certezas do corpo. (ser no mundo). É o caso da linha vertical, inseparável do homem ereto (o artista, o observador em pé diante da tela) que traz latente a dimensão do “em baixo”, do “em cima”. Do espaço oferecido entre céu e terra. E demais sugestões trazidas de sentidos do corpo deitado, horizontalizado, morto, enterrado.

Damish alerta para uma questão importante ao contar que o discurso pictural se desenvolve ao nível do percebido e não do imaginário. (DAMISH)

Nem sempre Marina cria livremente, fascinada por veículos imateriais da cor. Há momentos em que a construção pictural se enlaça com a imaginação poética. Diferente de tudo que é habitual, a criação poética abre espaço a ser preenchido. Os vultos indefinidos que aparecem com frequência no universo de sua pintura seriam sombras, não-objetos. Embora possam ser tomados por figuras visuais, operam como imagens: falam de presenças e ausências no espaço. Entes que atravessam o tempo, reduzidos a simples marcas de passagem, na concepção da artista que cria. Rastros. Quase nada. Resíduos de memória que evocam perdas.

Quem observa as sucessivas intervenções plásticas em que se dá o embate do por e tirar, percebe que os apagamentos realizados por Marina, não eliminam por completo presenças anteriores. As camadas da pintura que escondem, também deixam transparecer. Gosta da ambivalência gramatical da plástica, pela qual, o que se pinta, pode se estar desmanchando. Em suas operações: riscar é pôr, assim como equivale a anular. Sobrepor uma cor serve para trazer, para afastar, para apagar.

Desvela-se, em tal abertura, um entendimento de pôr e tirar, no qual o que se perde não desaparece, permanece em rastro, agregase a um novo estado. Conserva sentidos latentes, dissimulados nesta plástica.

Uma peculiaridade de sua obra é a reversibilidade de sinais, notadamente, da figura e do lugar, como se observa na disposição dos vultos, o que também aparece nas imagens de Santas e de Grutas vazias. Não se trata de demarcar um sentido ou outro, mas de se aproveitar uma margem de aproximação entre fatos da pintura.

Fenômenos reversíveis (como aqueles produzidos na termodinâmica) criam condições infinitamente próximas das condições de equilíbrio. Marina pratica sucessivas operações que assentam e desestabilizam o quadro até que o resultado se acomode, alicerçado por tensões, e permaneça vivo.

Em que medida, idas e vindas dispensam traçados? Marina experimenta amparar a flutuação de componentes (cores, pequenos sinais), detendo-os em precisos pontos de coordenadas lineares, de modo a pontuar lugares na extensão e na profundidade do campo. As tramas visíveis ou invisíveis conheceram, no curso de sua obra, inúmeras derivações, aparecendo também armadas em arabescos. Redes ou tramados passam a assumir relevante função estrutural na definição do campo plástico, ao lado da cor (que demarca áreas, preenche superfícies, assim como pode misturá-las).

Os traçados preliminares motivam respostas e convidam procedimentos no interior de uma tela, da mesma maneira que os novos trabalhos surgem em resposta às experiências anteriores.

….afecções do corpo

Nem sempre a matéria da pintura chega a ganhar forma, em si. Um simples manejo da cor, aglutinada ou rarefeita é parte do artista em íntima relação com a pintura. Marina atua sobre a matéria viva, sujeita a alterações de estado, corpo sob afecção. Instigada por particularidades da própria experiência plástica, surgem as elaborações que tocam a matéria da pintura, formada camada a camada.

A sensibilidade da matéria, intensificada em experiência interior, acerca-se da experiência dolorosa. É o que se nota quando ela pinta camadas de cor, de modo a “refazer” o caminho de uma mancha e dá o nome de “ferida”. Neste caso, Marina atua como sujeito do tecido em reconstituição. Embora, “feridas” também resultem de gestos violentos, pensadas como buracos que vazam.

Em outros trabalhos, atua superpondo folhas de jornal, manipulando sucessivas “peles”, fazendo que sejam tateadas pelo olho, e mostrem o teor negativo dos gestos desfechados para cavar as Covas Rasas. Com efeito, disfere gestos para machucar papéis aglomerados, e dilacerá-los desde o estrato superficial, escalavrando sua espessura. Retira a polpa, parte central do corpo do seu trabalho.

Com a mesma fricção agressiva, rasga a tela e fere abruptamente o material que lhe suporta, atingindo diretamente o duro fundo da própria parede.

O desregramento da pintura, que se tornou prática habitual na contemporaneidade, trouxe a crescente deshierarquização dos motivos, que são dignos ou indignos da atenção do pintor. Eles passam a encarar insignificâncias e rebaixamentos intencionais, seja pela indiferença do olhar, seja pela dose de humor com a qual os artistas calibram a visão. Ao transformar manchas em Poças, Marina experimenta o mais baixo, o sem estrutura, num universo submetido ao vetor material.

É frequente encontrar no âmbito de sua pintura essas manchas curvilíneas atraídas para dentro, como as Poças, que parecem se sustentar pela gravitação centrífuga. Criam vazios. Constituem âmagos, cernes profundos que vem a tona ou regrigem. São, em suas palavras: “núcleos”, “caroços”, “nódulos”.

alter-ações

Marina desdobra sua obra, com sensíveis alterações. Nem sempre atua livremente no campo ótico, em busca de veículos imateriais da cor. Tira também proveito de imagens, que são por assim dizer: figuras que procedem de outras coisas. Além de projetar imagens literais sobre a matéria trabalhada, maneja imagens visuais.

Vislumbra novos limites da matéria pictórica, usando imagens visuais assimiladas, construídas na história da pintura, hoje reconhecíveis em fotos publicadas em revistas, imediatamente dadas pela internet, cristalizadas em discursos-objeto. Indo além, irá extender fotograficamente sua imaginação de pintora e lançar o olhar para o espaço vivido, o mundo presente, como veremos adiante.

O aparecimento de desenhos no interior de pequenas telas pintadas, dá lugar à série Garotas. As Descabeladas, 2011-12, hoje na coleção MAC USP. O conjunto das imagens particularizadas, mostradas lado a lado, parecem dar conta da continuidade secular de um conjunto arqueológico, que chega em camadas sedimentares diversas. Entretanto, tem o poder de afetar imediatamente o observador, atraído por fragmentos sensíveis da estranha figuração.

Os esboços a lápis que respondem pelo carater reduzido das figuras convivem com estratos pictóricos, sem perder características de desenho – na medida e no fluxo gestual da mão. Nas telas pequenas, a grafia pode se imprimir sobre a pintura, cuja materialidade tece relações inesperadas com o risco. Sobressai o deslocamento de velhos componentes das artes plásticas, fragmentados, isolados um do outro.

Dados provavelmente por empatia artística, os motivos escolhidos para desenho recaem sobre representações religiosas de domínio popular, que circularam através de pintura figurativa de autoria diversa. Elas tem capacidade de recuperar, inconscientemente, a expressão gestual das emoções.

No sugestivo entrecruzamento psicológico, imagens usadas e reusadas ao longo dos séculos parecem retornar ao espaço de origem: a pintura. O que o traço de Marina abstrai da pintura que copia é suficiente para recuperar o que a imagem guarda de familiar e fazer com que os leitores possam recebê-la com natural intimidade.

Estes desenhos acenam com o que se pode considerar “figuras instituídas pela pintura, tendo se tornado imagens que sustentam o sentido dos valores expressivos conservados na memória, já que representaram por séculos as funções mais significativas de uma técnica espiritual”, nas palavras de Fernando Checa, no artigo sobre “a idéia de imagem artística en Aby Warburg: el Atlas Mnemosine.

O isolamento de figuras, retiradas de cenas em grupo, favorece o teor patético do corpo em movimento, lançado agora em novo espaço. A transposição reinventa o motivo, recortado do contexto de ação original, impulsionado pela tônica do redesenho, reorientado espacialmente em novo âmbito. Quem diria que aquele delicado corpo em queda, que Marina desenhou sobre tinta branca, teria se desgarrado de um afresco de Giotto da Deposição de Cristo?

<small> Giotto di Bodoni criava, no século XIII, nova forma de pintura narrativa, caracterizada por forte pathos emotivo, marcada por tons reais e profundamente humanos, anunciando a forma do mundo moderno. </small>

Nas pinturas anteriores, sensações – de ausência, de falta, de desaparecimento – eram mobilizadas na organização dos próprios meios plásticos. A antologia trágica de Marina segue versando sobre morte, abandono, queda, e conta com novos mediadores. Não raro, elabora imagens que remontam ao repertório da paixão. O humano meramente esboçado é posto em situações que acentuam o desalento. As pequenas telas recebem figuras que desabam, outras que se contorcem.

Conhecidos motivos da iconografia religiosa – como cenas da Morte Cristo, da Descida da Cruz, da Piedade e da Lamentação – integram a série das Garotas. As Descabeladas, ao lado de temas que frequentam revistas semanais, onde Marina pode observar a o tema da paixão banalizado. Ela conta que o desenho de uma pose em escorço, foi tirado da fotografia de uma cena de novela televisiva (um abraço dado pelo ator Tony Ramos à atriz Gloria Pires), e desenvolvido a partir de sucessivas traduções. O interesse despertado pela foto deveu-se à pose das duas figuras apaixonadas: “figuras espelhadas, uma na outra”, “uma desaparecendo na outra”.

Marina não está preocupada com as alusões, nem pretende demarcar continuidades, ao contrário, procura estender sucessivamente a dispersão espacial do discurso, num jogo de regras irredutíveis, visando consumar especifidades.

Outro recorte de figuras femininas debruçadas sobre um corpo morto baseia-se na imagem de lamento fúnebre. Traz gestos familiares, introjetados de longa data, facilmente reconhecíveis, fartamente difundidos em interpretações religiosas. Na sujeição dramática das figuras à nova antologia trágica, o sofrimento dos lamentos dispensa as auras luminosas irradiadas sobre as cabeças. Garotas cabeludas condizem com gestos exasperados de arrancar cabelos.

Para quem acompanha a liberdade com que Marina penetra no universo da pintura, sabe que seus atos livres são mais uma tentativa de refundá-la sob outros princípios. O ânimo que motiva a elaboração artística é intuído no rebatimentos da vida na arte.

O mal estar e o sentimento de desamparo perpassa figuras sucintas, que aparecem envoltas em mantos medievais. Rebatem imagens que podem hoje ser percebidas, nas ruas da cidade, de homens deitados protegidos por uma coberta. Cortes sumários e separações abruptas acentuam ilhas de isolamento e imagens de abandono. O inenarrável não dispensa que se agregue cores e que se aguce confrontos inusitados de resistências cromática. Marina é dessas artistas que se dedica a escapar do previsto. Especialista em escapadas do cêrco a cada momento, inútil procurar cercá-la. Hábil em escapadas que confundem o olhar, sua obra resiste ao cerco. Vejamos, a seguir, de que maneira vai ao encontro do mundo presente.

Marina anda vendo coisas por aí….

Sabemos que coisas do mundo real capturam potências do olhar para que possam ser vistas. Walter Benjamin tratou com propriedade o inconsciente ótico. Oscar Wilde falava que “a vida imita a arte muito mais do que a a arte imita a vida”. Nas trocas entre arte e vida indago sempre como eu teria enxergado a Itália, se não tivesse assistido filmes de Felini.

Com o olhar voltado para o mundo, Marina articula novas constelações para seu universo imaginário através da fotografia. O domínio adquirido no fluxo das pinturas e no manejo heterogêneo das técnicas dá à ela especial bagagem para tornar ao espaço real. A fotografia virá fixar em imagens do mundo o substrato da imaginação organizada por meio da pintura e ela passa a projetar em cenas diárias as formas praticadas em seus quadros.

Desse processo, derivam montagens fotográficas e ensaios, em que o mundo concreto se torna surreal. Saltam mais uma vez aos olhos configurações identificadas com sensações do corpo: O chão que foge. O céu que pesa e cai. A sensação de vertigem. O malestar… Impressões deixadas por encontros inquietantes que reaparecem registradas em fotografias de cenas banais.

Entre elas, destaco Real (VERDADES), em que, hastes verticais fincadas sob inundação e portanto sem chão, prováveis componentes para armação de barracas na praia, perdem visualmente a possibilidade de configurar sua unidade. Paginadas em série e dispostas lado a lado, as fotos recebem interferências pelas quais Marina explora possibilidades, na tentativa de encontrar uma lógica visual que dê conta de restabelecer a configuração das hastes verticais, fincadas a beira mar, num jogo insoluvel. Este jogo, Marina chamou A dança. A mesma série conhece outras versões, como as fotos de hastes armadas que recebem superfícies espelhadas, as fotos de armações que sustentam a pintura de planos dependurados, fechando faces do cubo.

D’ O Passeio nasce outra imagem exemplar: a visão assombrada por ocasião de um passeio num jardim europeu, onde o fotógrafo é surpreendida pela imagem sinistra de arbustos ordenados envolvidos por capas, alinhados, uma imagem inquietante próxima a um exército de corpos embrulhados sem vida. Lembrese que figuras de corpos embrulhados habitam suas pinturas desde a década de 90. E que, neste caso, é o mundo visível que se torna sórdido, estranho e desconhecido. O concreto que é chocante.

Em mais uma experiência do sujeito em percurso pelo mundo, impõem-se à fotógrafa a abstração diante real ao focalizar inesperados estímulos com o olhar treinado na configuração de quadros. As figuras surpreendidas pela câmera fotográfica são recortadas diretamente de construções encontradas em diferentes paisagens. O interesse despertado por Contadores (da serie de portas ), 2006, está na possibilidade do olhar fotográfico estabelecer relações formais entre estímulos de natureza diversa, achados pelo mundo. 2 brancos, um azul, são o elo de conexão ente imagens colhidas em situações dispersas e constituem argumento para a montagem de um conjunto conectado pela repetição da cor e alternância de formatos, ensejando o estranhamento daquilo que aparece nos saltos da narrativa. A relação entre dois brancos, um azul, vai se repetir entre lápides construídas e o vazio das portas, operarando relações de troca entre cheio e vazio. Mostra Marina decalcando seu trabalho sobre o espaço do mundo, numa nova escrita em pedaços.

A repetição – procedimento seguro que acompanhou sempre o curso de seu trabalho – descola-se do espaço imaginário da pintura para o espaço real. Os meios apropriados por Marina, cotidianamente, vão se multiplicando, materializados em novos recursos de trabalho. Até mesmo um durex colorido é capaz de gerar a linda transparência de uma linha. Em suma, a pintura, como campo em transformação, proporciona-lhe o jogo das transformações. Sem expectativa de uma totalidade coerente, ocupa-se de pequenas diferenciações e de seus desdobramentos numa escala do sem fim.

Referências

*DAMISH, Hubert. Fenêtre jaune cadmium ou les dessous de la peinture.
Paris: Du Seuil, 1984

*O artigo de Fernando Checa aparece em WARBURG, Aby. ATLAS
MNEMOSYNE. Madrid: Ediciones Akal, 2010, p 145

*De Giotto di Bondone, veja:
– “A Deposição de Cristo” ou “Lamentação pela Morte de Cristo”
(pormenor do ciclo Cenas da Vida da Virgem e de Jesus), afresco,
200x185cm. Capella degli Scrovegni – Pádua, 1303-1306