Women and Painting
I paint because I am a woman
(It´s a logical necessity.)
If painting is female and insanity is a female malady,
then all women painters are mad and all male painters are women. (…)
I paint because I am a religious woman
(I believe in eternity.)
Painting doesn’t freeze time. It circulates and recycles time like a wheel that turns.
Those who were first might well be last. Painting is a very slow art. It doesn’t travel with the speed of light. That’s
why dead painters shine so bright. (…)
I paint because I am a dirty woman
(Painting is a messy business.)
It cannot ever be a pure conceptual medium. The more “conceptual” or cleaner the art, the more the head can be separated from the body, and the more the labor can be done by others. Painting is the only manual labor I do.
Marlene Dumas (catálogo da mostra coletiva “Painting at the Edge of the World”, Walker Art Center, Minneapolis, EUA, 2001)
Fluxo e refluxo. Conter e vazar. Presença e ausência. Navegar e deixar-se levar. A série de fotografias que Marina Saleme exibe nesta exposição tem o ritmo das marés. Compartilha com o oceano uma inteireza que se esfacela e se refaz: como a onda, ora se acumula vertical, ora se espraia horizontal. Vai e vem. É líquido empoçado ou tinta que se esvai. Sobe e desce. Crista enovelada ou espuma em fervente dispersão. Pequena embarcação que singra um rumo ou aceita a correnteza.
Ao tocar a epiderme das coisas, toca também seu âmago. É paisagem sem horizonte porque paisagem interior, que faz um reordenamento de mundo a partir de um trabalho de luto. Ao esquadrinhar a fundura do que falta, precisa arquitetar o que deve seguir à tona. Plano de navegação. Singradura: tempo de viagem de um navio desde a partida até chegar ao porto de destino.
Continente e conteúdo, o barco/olho/casa/corpo verte lágrima e sangue. É fragmento mineral que brota e se destaca do branco da parede como se fosse um organismo vivo. Uma pálpebra. Atinge mar aberto e flutua. Resiste e se renova. Abre-se e deixa fluir a dor vermelha para longe. Sobrenada a torrente rubra que se dissolve. Encontra outras naus/feridas ou vem dar na praia, vazia e limpa.
Com essas fotos, Marina faz pintura. Revisita e subverte um dos gêneros mais tradicionais da história da pintura: a paisagem e, em especial, a marinha. Troca de ferramentas mas não desvia o foco. Faz o que chamo de pintura reencarnada, ou seja, um raciocínio pictórico pousado em outros materiais e processos.
A construção da visualidade da obra obedece a uma ordenação vocabular que a artista soube amealhar e consolidar com telas e pigmentos. Há estrutura, ritmo e cor. Há veladuras e trajetos de luz, transparências, opacidades e, mesmo, sobreposição de grafismos que relativizam a sedução do meio. Ao mesmo tempo, coexiste nesses trabalhos uma outra natureza: aquela derivada da hibridização com o objeto e a performance.
Os trabalhos fotográficos de Marina se nutrem da tradição pictórica para atingir outro patamar: o das sutilezas do conceito. Ao contrário da arte conceitual, no entanto, não há desapego pela sensualidade da matéria. Ela se transubstancia, se evola de um corpo para existir em outro, como pintura reencarnada. Por alguns momentos, deixa de ser o aglomerado de moléculas de um organismo para ser pura energia de sinapses cerebrais. A tinta e suas densidades tonais também assumem essa imaterialidade feita de energia, transmutando-se nos impulsos eletrônicos dos pixels da máquina digital para depois pousar no papel da cópia fotográfica.
A denominação pintura reencarnada alude à sempre anunciada e nunca confirmada morte da pintura. Alude também a uma certa tenacidade dos artistas em operar o pictórico a despeito da larga sombra de suspeição que se abateu sobre ele, quase enxotado do mundo contemporâneo para um empoeirado escaninho da modernidade. Esse termo tem conexão direta com a saudável sobrevida injetada na pintura pelas práticas multimeios da cena atual.
Se formos traçar uma linha histórica dos sucessivos anúncios de morte da pintura, vamos notar que o fenômeno tem mais de um século. Conforme nos esclarece Yves-Alain Bois (1) , a pintura modernista já convivia com esse trauma. Aliás, como ele afirma, “o luto foi a atividade da pintura durante todo o século 20”. Uma atividade, frisa, “que não se tornou necessariamente patológica: a sensação de um fim acima de tudo produziu uma irrefutável história da pintura, em particular da pintura modernista, a qual estávamos muito provavelmente dispostos a enterrar”.
Para Bois, a vitalidade da pintura “apenas será testada quando estivermos curados de nossas manias, de nossa melancolia, e voltarmos a acreditar em nossa capacidade como agentes da história, aceitando o projeto de atuar em meio ao fim, em vez de escapar dele através de mecanismos de defesa cada vez mais elaborados”.
Alexander Rodchenko foi um dos primeiros arautos da morte da pintura ao realizar, em 1921, três telas monocromáticas (vermelho, azul e amarelo) e declarar: “Está tudo acabado: cores básicas e cada plano é o próprio plano. Não há mais representação na pintura”.
Mondrian também afirmou que suas telas — negações da ilusão de ótica de profundidade e da função descritiva da imagem — apontavam o fim da pintura. Marcel Duchamp, por sua vez, teve objetivo demolidor ainda mais amplo ao criar os readymades e virar do avesso o próprio estatuto do fazer artístico.
O aparente esgotamento da pintura alcançou, no final dos anos 90, seu momento de ironia mais feroz. Foi quando a dupla de artistas russos Vitaly Komar e Alexander Melamid fez ampla pesquisa de opinião nos Estados Unidos para determinar a Pintura Mais Popular (Most Wanted Painting). A imagem vencedora acabou sendo uma paisagem em estilo realista: céu azul, árvores frondosas, uma casa, uma família típica americana em roupas de domingo e, em primeiro plano, o ex-presidente George Washington.
Essa imagem foi exibida por Komar e Melamid em uma moldura dourada e protegida por uma elegante corda de veludo vermelho. Mais ironia impossível. Que distância do prestígio que a pintura à óleo gozou desde que começou a irradiar-se pelas cortes européias do século XVI para ser entesourada nos museus que ainda hoje nos fascinam!
O anúncio mais enfático de morte tão ilustre ocorreu, no entanto, no início do século XIX, com a invenção da fotografia, por Joseph Nicéphore Niépce, em 1815. É curioso que a pintura reencarnada presente na obra de Marina Saleme utilize exatamente a fotografia para revitalizar o universo pictórico. Ou seja, que faça uma volta completa na quebra do paradigma. Embora aparentemente figurativas, não pretendem a representação tradicional e sim conotar, evocar e provocar um mergulho intimista, um reconhecimento dos avessos que nos habitam.
Agrupados em dípticos para ressaltar a passagem do tempo e a existência de um antes e um depois, o conjunto de trabalhos desta mostra se articula em ritmo quase musical, com contrapontos entre interior e exterior; construído e natural; cor e traço; memória e efêmero. Assim, ao lado da imagem horizontal de uma superfície líquida e móvel que reflui da areia há outra, vertical, de uma parede manchada de umidade. Há a existência presente e a existência passada.
A concavidade inventada em gesso tem seu duplo no remanso da água guardada entre rochas da praia. O reflexo bucólico do emaranhado de hastes da grama na água levemente tocada pela brisa ganha par e contraste no grafismo compulsivo riscado a carvão na parede alva de onde escorre (lágrima?) um líquido azul translúcido. As margens estabelecidas pela tinta verde em parede branca parecem continuar, quase como um traço de sismógrafo, na espuma que borda a onda.
Em todos esses trabalhos fica evidente outro elo com o universo da pintura: a frontalidade. Mesmo que parte da imagem seja feita a partir da construção de relevos na parede, esses relevos são apenas uma etapa do processo que vai resultar no registro fotográfico que se constitui na obra acabada. Mesmo destacados da parede, transformados em objetos, eles não existem como identidades independentes. São sintagmas do discurso bidimensional estabelecido nas fotos. Substantivos de uma frase.
Ainda no rastro da sintaxe pictórica, há nessas fotos a sobreposição de planos que tanto remete à prática da veladura quanto ao processo que a artista começou a evidenciar em 1988, com a série de trabalhos em que colava folhas sobrepostas de jornal, estabelecendo durante esse acúmulo diversas intervenções tanto em desenho e pintura quanto em afiadas incisões na espessura da matéria. Procedimentos que, transpostos para sua pintura, criam dualidade entre a composição que brota naturalmente sedutora e a necessidade que a artista sente de cancelar essa facilidade visual, introduzir dissonâncias nas harmonias de formas e cores, assinalar que não há perspectiva e que os elementos flutuam ou afundam em diversos níveis de percepção.
“Duvido o tempo inteiro do que estou fazendo, começo meus trabalhos a partir dessa dúvida. Só dou por terminada uma obra quando parece que tudo se perdeu, quando destruo e depois resgato. Quando faço pintura encima da pintura. Preciso dessa tensão de estar à beira do abismo. É difícil trabalhar quando não sinto essa vertigem”, observa a artista (2). Nos dípticos fotográficos, as abruptas trocas de plano são utilizadas para tensionar a sedução da paisagem. O uso de um elemento estranho ao meio (o barco/olho) potencializa a artificialidade pretendida e reforça o estatuto de arte, que apenas se serve do registro mecânico do real mas jamais se encerra apenas nisso.
Foi obrigando a nossa retina a um constante ajuste de perto e longe mesmo diante da frontalidade extrema que Marina criou sua obra de maioridade pictórica: a enorme Goela, que ocupou 17 metros de uma parede inesquecível no Centro Universitário Maria Antonia, em outubro de 2001, quando de sua individual Sobre Poças. Outra obra de excepcional qualidade exibida na mesma ocasião, Alice Espelho Meu, consolidou a certeza de que estávamos diante de uma das melhores expressões pictóricas de sua geração. Uma geração que precisou de muita garra para vencer o desencanto com a pintura derivada da vertiginosa ascensão mercadológica e gradual esfacelamento estético de grande parte dos valores surgidos nos anos 80.
Marina faz uma pintura que (raridade absoluta!) exercita o pleno domínio técnico sem cair no preciosismo vazio que, atualmente e especialmente em São Paulo, costuma derivar da obediência cega à velha e superada maçonaria do formalismo greenberguiano. (Também) por isso a obra de Marina é vigorosa e afirmativa em um meio atualmente tão anêmico. Ela afirma, na prática do seu ateliê, que a pintura está mais viva do que nunca. De quebra, dá um recado: a pintura só está viva para os pintores que se assumem vivos e não meros executores de receitas consagradas.
As metáforas desta presente mostra são claras, embora tenham sido feitas com a delicadeza do sussurro ao invés das afirmações em voz alta. Marina não usou desta vez a escala operística apesar de aferrar-se a um objetivo grandioso: pensar o lugar do humano no mundo, tentar circunscrever a imensidão da tarefa de existir. Subjaz aí uma utopia necessária: esgotar as lágrimas e conviver com a poderosa presença de uma ausência. É como se as feridas/poças de sua pintura tivessem se desprendido da tela para serem lavadas/levadas ao mar.
Ao sedimentar novas fronteiras para sua obra, a artista demonstra, em paralelo, a total viabilidade de um projeto pictórico contemporâneo, tanto com materiais tradicionais (óleo sobre tela) quanto com processos e recursos próprios desta nossa época de imagens digitais.
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(1) ensaio “Painting: The Task of Mourning”, no catálogo da mostra
“Endgame: Reference and Simulation in Recent Painting and Sculpture” (1986, Massachusetts Institute of
Technology, MIT Press)
(2) Depoimento da artista à autora, em julho de 2003.