Pressionada pela onipresente ideologia da comunicação, que induz a crença numa esfera cultural posta sempre a priori para o trabalho de arte, com ascendência, portanto, para definir-lhe os critérios e ainda cobrar-lhe a eficiência que se espera de um fato de comunicação, a pintura é hoje incessantemente desacreditada em suas pretensões autoreflexivas, aquelas que visariam ao questionamento de seus meios e condições de possibilidade na situação contemporânea.
Para passar a limpo os motivos históricos deste descrédito, convém perguntar se a crítica cultural acumulada nas últimas décadas – no afã de condenar o formalismo em que viu desaguar a tradição moderna – não teria condenado, no mesmo golpe, o cerne de produtividade do pensamento artístico, justo sua dimensão material, que lhe garantiria a prerrogativa de colocar-se a si próprio em questão, e assim também as condições em que se formula o debate cultural de seu tempo. Pois, se como sabemos, tal condenação recai sobre a desmaterialização histórica e social da arte levada a cabo pelo idealismo formalista, surpreende agora que se queira aniquilar precisamente esta dimensão material – linguística – por meio da qual a arte pode comparecer no interior mesmo do processo social.
Por outro lado, é como se o contexto da arte contemporânea funcionasse no sentido de obter um ajuste sem sobras entre a necessidade do trabalho de arte, de alcançar a escala pública, e as expectativas culturais e institucionais que o cercam, restando, no fim das contas, pouco espaço para hesitações conceituais. É claro que tal estado de coisas, ao inscrever a recepção da arte como ato positivo de comunicação, de difusão de um padrão cultural médio, conspira contra a possibilidade da existência do intransitivo, deste hiato reflexivo, do momento meta-crítico da arte.
Ocorre que este hiato reflexivo só pode vir a se expressar se o debate contemporâneo for capaz de reabilitar – decerto que só valeria a pena fazê lo em novos termos – a noção de forma. Se for capaz, enfim, de precipitar uma discussão que reponha na ordem do dia os modos pelos quais ela permanece latente nos problemas artísticos contemporâneos, ainda que desprestigiada, “desconstruída” ou citada sob o filtro dos estilos. É este universo de questões que interessa à pintura de Marina Saleme.
De todo modo, trata-se de posição difícil e onerosa para ser assumida hoje por qualquer pintor. Mesmo desejando recolocar em pauta a questão da forma, é preciso admitir que a pintura, inclusive aquela que se inclina à dúvida metalinguística e coloca profundamente em xeque suas circunstancias materiais de produção (o que significa: tanto seus meios, seus procedimentos formais, quanto a materialidade de sua circunstância social)’, não pode estar alheia ao fato de que a dimensão pública da produção contemporânea confunde-se cada vez mais com uma esfera cultural balizada de ponta a ponta por exigências heterogêneas, extra artísticas.
Cabe dizer, em suma, que essa difusa esfera da cultura roubou à arte o privilégio de operar o campo da visão como a mais alta experiência perceptiva, uma vez que aí acorrem mais ou menos arbitrariamente fatores exógenos, já metabolizados como “cultura” ou “cultura visual” num sem número de outras instâncias, de sorte que não seria mais possível afirmar que a constituição do campo da visão se dá sob a jurisdição estrita de um fenômeno perceptivo e sob a vigência da relação perfeita e sem rebarbas sujeito/objeto.
O que pintar? de que ponto de vista se posiciona o pintor? qual a atitude contemporânea possível perante a pintura? haverá regiões inteiras que o campo da visão, tal como pensado na arte moderna, já não abarca? Uma das perguntas fundamentais que se faz então o trabalho de Marina Saleme é sobre este objeto heterogêneo que agora passa a ocupar o “ver” da pintura. Entretanto, seu problema central será justamente avançar sempre mais além da pedagogia cultural em curso, não porque se encontre atormentada na inquirição do autêntico ou do suposto núcleo originário da pintura, mas antes para construir uma condição inicial de trabalho, onde a força constituinte da visão terá de limpar caminho perante formas já colonizadas culturalmente.
Para deixar claro desde o princípio que o que está em questão é o possível “conteúdo” da pintura (aquilo de que ela trata), os trabalhos deliberadamente protagonizam uma indefinição entre o registro abstrato e o figurativo?, de modo que o observador tenha sempre a impressão de estar olhando para algo vagamente identificável, “para fora”, para um objeto “externo”. A figuração meio indefinida está aí, em suma, para armar as cunhas de um campo da representação.
Mas o que representam estas pinturas? Nada, a não ser a soma das tentativas para se ajustar uma moldura para a visão, trazendo à tona, quem sabe, os indícios de uma “ossatura” formal, que trabalhe no sentido de fixar algum objeto, espacializar (e particularizar) as superficies neutras e indiferenciadas que fazem a paisagem contemporânea, não importando o quão fluida e fragmentária possa se impor tal paisagem. Ressalte-se, em todo caso, que seria decisivamente impróprio considerar essas telas “abstratas”, se concebermos o termo como processo sucessivo de redução culminando na síntese das formas interiores. Ao contrário, conta aqui principalmente a exterioridade e o materialismo da visão que se deseja afirmar em cada tela. E de resto, é preciso ressaltar que o que estaria em questão para a artista não seria redução, mas constituição de formas.
Dado que o conjunto dos trabalhos não pretende ser tomado como “pintura conceitual”, não tendo qualquer veleidade intelectualista ou pretensão de teorizar, é claro que opera numa margem de indeterminação razoável, entre o desejo intelectual de, num ambiente entrópico, organizar construtivamente a visão, e o deixar-se levar por sensações tácteis que espacializam, localizam e incorporam de maneira integral a posição do observador. Com isto, as pinturas reintroduzem enfaticamente e sem qualquer ostentação de ingenuidade intelectual as qualidades hedonistas e sensíveis do olhar, não ignorando, ao mesmo tempo, as exigências da operação conceitual e auto-refexiva em curso.
Esta se concentra, a despeito das aparências, num elenco restrito de procedimentos formais. De fato, o que aí dá a impressão de ser ponto de partida é produto arduamente alcançado. Assim, por exemplo, a aparência informal, beirando ao gestual de muitos desses trabalhos, e igualmente as estruturas em rede que parecem frouxamente assinaladas são, na verdade, a face visível de uma obstinada organização construtiva do campo. Do mesmo modo as cores, que sugeririam a expansão de uma ansiedade expressiva, surgem meio arbitrariamente, da variabilidade possível dos pigmentos à mão. Neste sentido, haverá sempre o contraste entre o despojamento minimalista do processo, e o resultado expressivo obtido, indicando, ao fim e ao cabo, uma apreensão engajada e altamente singularizada deste “objeto externo”.
Vale dizer que, ao mesmo tempo em que os trabalhos solicitam os instrumentos da linguagem construtiva, e por meio destes, a capacidade discriminatória e totalizadora da visão, reconhece-se a injunção irrecusável de elementos de indeterminação nesse campo. Tais elementos fazem parte, por assim dizer, da camada ideológica que a experiência cultural incessantemente produz, e compete ao olhar reprocessá-los, suspender a moral que eles destilam, sob pena de ver minada sua própria experiência constitutiva.
Por isto, desde o início se afirmou que as pinturas de Marina Saleme começam pela dúvida em relação à credibilidade de seu objeto, dúvida também quanto à vocação que este possa ter para redescrever uma “paisagem” contemporânea. O fato de que estejam às voltas com o modo de persistência dos problemas da forma não significa, então, que não sejam vulneráveis a tal indeterminação, pois é precisamente esta vulnerabilidade que acaba por restringir o controle da linguagem construtiva e pede uma particularização, uma consideração caso a caso de cada circunscrição visual.
Dessa maneira, o foco que os trabalhos lutam por acomodar permite certa deriva, ronda um centro imaginário que nunca se fixa e, se o aspecto frontal é constante, ele não exclui alguma fiutuação perspectiva. São variáveis a lembrar que aí intervém a singularidade de um observador, testando a eficiencia de seu raio de visão num campo encharcado em proselitismo cultural, mas cujas coordenadas ele afinal pode sempre determinar.