O devir do porvir

Cauê Alves
, 2011

Ao folhear o livro de Marina Saleme, que reúne parte significativa de mais de vinte anos de trabalho, temos a oportunidade de construir uma espécie de narrativa aberta de sua obra. É possível compreender seu percurso a partir do encadeamento sincrônico de imagens e acontecimentos que revelam um fluxo ora contínuo, ora nem tanto, em sua pintura. A trajetória de Marina Saleme impressiona não apenas pela coerência, por sua identidade interna, mas pelo fato de ao mesmo tempo em que seus mais recentes trabalhos podem ser vistos como desdobramentos dos primeiros, eles são também independentes, livres e claramente distintos dos anteriores.

Ao longo de seu percurso, a artista foi produzindo pinturas que se diferenciam uma das outras, mas que não se opõem porque carregam em seu interior uma semente, uma potência geradora do porvir. No final dos anos de 1980, por exemplo, surgem em suas telas elementos fortes, uma espécie de anteparo, estruturas que barram o olhar como em Sem título, 1989, díptico. Mais tarde os anteparos terminam nos pés das pessoas e funcionam como bancos. Essas estruturas permanecem em pinturas como Céu de almas, 1995 (à direita, primeira imagem), e podem ser reencontradas como guarda-corpos, parapeito entre o chão e o abismo, em telas como Praça, 2008 (segunda imagem). Em duas das imagens de Contadores (da série Portas), de 2006, elas já podiam ser redescobertas.

Não se trata de um projeto deliberado da artista de manter alguns elementos para que haja unidade entre trabalhos de diferentes períodos, mas de uma percepção posterior que apenas se faz num olhar retrospectivo, que não é o mesmo de quem está diante da tela trabalhando. Em vez de a artista recuperar fios soltos ao longo de sua trajetória, são certos elementos que indiretamente a perseguem e a surpreendem por sua recorrência.

Algo semelhante ocorre com os nódulos úmidos ou os caroços presentes em desenhos como O passeio, 1995, e Deitado, 1997 (próxima página), que viraram poças, cavidades e depois nuvens carregadas de onde escorre um líquido negro. A diferença está apenas no fato de que ora elas são elementos que contêm o líquido, covas, ou seja, formas em que há uma força que privilegia a concentração, ora são feridas que vazam, transbordam, escorrem e fazem que o líquido se disperse ou se perca no mar, como na série Portantes, 2003. Aos poucos, o elemento líquido, ou as formas mais densas e concentradas no trabalho de Marina Saleme vão se tornando pesadas a ponto de não poderem mais ser contidas. É desse movimento que parece brotar a noção recorrente de chuva que está em Gotas, 1999, ou de um céu carregado, prestes a desabar, como em Pancadas, 2001.

Mas a chuva, que é também lágrima ou sangue, é derivada de uma grade que estrutura a pintura, uma rasura que resultou num esfacelamento da própria tela. O gesto de riscar, que surge como anulação, aos poucos se tornou elemento orgânico e vivo. Em algumas telas, como Fortuna, 2009, e Noite, 2009 (à direita), mas também em muitos dos trabalhos posteriores, a nuvem ou a chuva, que eram figuras, tornaram-se fundo. Na verdade, a pintura de Marina Saleme parece desfazer a regra de que para toda figura percebida há um fundo. O espaço intermediário de colorido intenso entre figuras é o protagonista de vários trabalhos. É a luminosidade da cor que dava estrutura às telas e que mais do que preencher espaços sustentava toda a composição. Entretanto, nos últimos trabalhos, como Doce noite, 2010 (próxima página), o que sustenta os elementos pesados, as nuvens carregadas, são linhas curvas entrelaçadas.

Nas pinturas recentes da artista, linhas sinuosas surgem do encontro de cores e formas. Uma pincelada se enlaça na outra e na seguinte. E entre elas surgem massas de cor que estavam no fundo ou que talvez tenham vindo mais tarde. Em vez de estruturas retas compostas de losangos, como em Feridas, 2001, Alice, 2001, ou Goela, 2001, realizada no Centro Universitário Maria Antonia, as telas atuais são cheias de arabescos. Entre um ponto e outro há mais desvios, curvas e ornamentos. O desenho surge da trama do fundo, do encontro entre cores, do cheio e do vazado. Ele adquire autonomia como se se libertasse de sua origem, mesmo que às vezes a linha retorne ao início, ao fundo primordial, e se apague.

O apagamento na obra de Marina Saleme é também uma constante que se mantém e se modifica ao longo dos últimos vinte e tantos anos. Ele indica que há algo entre o que foi apagado e o novo gesto, é índice que torna presente algo que não está mais aí. O que importa não é tanto a função literal de corrigir, mas o sentido do refazer, de um retorno ao estágio anterior que o tempo linear e objetivo impossibilitaria, uma vez que a volta já pressupõe a consciência que antes não se tinha.

Como a princípio não há erro em pintura, uma vez que não existe gramática predefinida, não é o caso de apagar um elemento equivocado, mas de construir pela negação, de revelar pelo que se retira. Especialmente no caso de Marina Saleme, o processo da pintura se dá a partir da sobreposição de camadas. É aí que figuras surgem, são cobertas e repintadas. Assim, o espaço vai se adensando conforme a matéria da tinta vai sendo acrescentada.

A série Auto retratos, 2009, de Marina Saleme, nos ajuda a elucidar a noção de apagamento. Quando a artista pinta uma mancha sobre sua boca ou retira a definição das linhas de sua face, ela não está apenas negando sua silhueta ou se amordaçando, mas sim revelando o próprio silêncio de onde se origina toda a fala possível.

No apagamento está a ausência que se manifesta e que faz questão de ser percebida, o invisível que sustenta a visibilidade.

Apagar em seu trabalho é um constante recomeço, uma procura incessante. Tudo se passa como se as soluções já estivessem no interior da pintura, no fundo da tela, e fossem parcialmente recuperadas. A profundidade da pintura é tecida pelo avesso, num movimento do fundo para o primeiro plano e vice-versa. Mas nesse processo, ao contrário do mecanismo de uma tela de computador, nem todas as “imperfeições” são apagadas. A memória do fazer da pintura é presente depois que o trabalho é dado por acabado.

Na linguagem falada, mesmo que o orador corrija uma frase ou um termo mal pronunciado, não há como voltar atrás. Não dá para retornar no tempo e refazer o discurso.

Na pintura o processo é semelhante, mas como o público não acompanha de perto sua elaboração o que se vê é um conjunto de camadas simultâneas, desde as opacas até as mais transparentes. Diante da pintura de Marina Saleme não sabemos ao certo o que veio antes ou depois.

O tempo de sua pintura se apresenta de modo não linear. Trata-se de uma profusão de tempos concomitantes, como se passado, presente e futuro se reunissem em um mesmo trabalho. A pintura aparece como um conjunto de gestos sincrônicos que não se mostram a partir de um processo evolutivo. Todas as pinceladas coincidem no campo da tela, mesmo que estejam submersas e cobertas por outras e que retomem pinturas passadas e as que ainda virão. É um presente que carrega parte do processo que o originou e um pouquinho do futuro, o que ainda irá acontecer em sua obra.

Na monumental tela Por trás disso tudo, 2009 (à direita), uma espécie de síntese em que reaparece muito do vocabulário da artista (nuvens/poças se fundem com arabescos, chuvas e figuras apagadas), é evidente a percepção de que as figuras humanas estão ali diante de nós como fantasmas. Isso não quer dizer que as vemos apenas como destituídas de realidade, como imaginação, mas também como um fenômeno sensível e concreto. As figuras estão disfarçadas, mas estão ali, como sombras, a ponto de o intervalo entre elas ser tão ou mais importante que elas mesmas. São presentificações de ausências, figuras que ainda existirão, que continuam existindo, que existiram.

A ordenação do tempo no trabalho de Marina Saleme, quando sugere alguma cronologia, tende a uma sucessão regressiva. Geralmente usada quando acontecimentos muito aguardados estão prestes a ocorrer, como a virada do ano, a proximidade de um evento especial, a expectativa do fim, a contagem regressiva tende sempre ao elemento inicial de uma série, ao zero, ou seja, a representação da ausência. A série Contadores, 2006, alude à não acumulação que esse retorno a estágios já percorridos implica. Mais do que a constatação da falta de permanência das coisas, há nesse trabalho a concepção sobre a ciclicidade inexorável do tempo. Neles, épocas distintas podem ser não apenas conectadas, mas simultâneas.

A recorrência de certas formas nas pinturas e fotografias de Marina Saleme sugere um longo processo de maturação que inclui avanços, recuos e um contínuo voltar-se sobre si mesmo. E esse retorno ao ponto inicial, a volta à estaca zero, nos ajuda a compreender o movimento de sua reflexão. Sua obra é povoada de vultos, lápides e vazios. Além do elemento vazado, é possível perceber certas estruturas que bloqueiam a visão e marcam o fim de um trajeto, ou talvez o início.

A fotografia no percurso de Marina Saleme surgiu como um desdobramento de seu raciocínio pictórico e temporal e, portanto, é menos um fim do que um meio. As fotos, mais do que o poder de multiplicação da imagem, fazem reverberar a noção de tempo dos trabalhos, seja como espelhamento, como em Portantes, 2003 (à direita), seja como regressão ao zero, em Contadores, 2006. Suas pinturas têm aparência mais fluida do que a das fotos e possuem dezenas de camadas de tinta. Nelas, o feito é desfeito e, várias vezes, refeito até se chegar a um resultado que não poderia ter sido projetado, porque ele surge durante o processo de trabalho. É como se houvesse a possibilidade de processos serem revertidos ao estado anterior, mas nesse trajeto algo diferente acontece.

As telas se beneficiam da sobreposição e do adensamento de matéria, exigindo um tempo mais lento, ao passo que as séries de fotografias – talvez com exceções como a da grande foto que é antes de tudo pintura (próxima página) – possuem um aspecto mais instantâneo. O que ocorre é que a artista reencontra no mundo certas estruturas que foram construídas em sua pintura, retornando à origem de sua pesquisa, ao ponto de partida. A reversibilidade e a possibilidade de espelhamento que enriquecem seu espaço pictórico. Ora mais etérea, ora espessa, sua produção possui uma ambiguidade que não se contenta com definições prévias.

Sem jamais abdicar da figura, o trabalho de Marina Saleme se coloca aquém da esquemática tradição que opera a partir da oposição entre figuração e abstração, como se a arte abstrata fosse livre da representação que a figuração nunca conseguiria abandonar. Representar uma imagem que corresponda a algo que esteja fora do alcance de nossa vista se confunde, aqui, com apresentação: o modo como o trabalho da artista se deixa conhecer sem que seja preciso recorrer a algo exterior a ele. Essas obras são aquilo que vemos, sua própria materialidade, mas não deixam de ser, ao mesmo tempo, aquilo que poderia estar nas obras que ainda virão ou o que está entre cada uma delas.

A abstração está tradicionalmente associada ao isolamento de um objeto, a retirá-lo da relação com outros elementos, fazendo que ele perca sua concretude.

Por isso a abstração é um alheamento, um voltar-se para si mesmo na medida em que se retira a ênfase naquilo que está no entorno do objeto. Já figurar é traçar contorno, demonstrar, dar um sentido preciso para as formas, tornando-as reconhecíveis ou ao menos um análogo da natureza ou da cultura. O que Marina Saleme faz não pode rigorosamente ser associado apenas a abstrair ou a figurar, mas a algo entre um e outro. Há uma indeterminação em sua obra que impede classificações estanques. Ao mesmo tempo que há um retorno sobre si mesmo, certa reflexividade em sua obra, um elemento estrutural isolado, como o já mencionado aparador, pode ser reconhecível como figura, como banco ou guardacorpo em trabalhos posteriores. O mesmo se dá em relação aos intervalos entre as figuras humanas, que são como figurações abstraídas. Aí está um dos enigmas de sua trajetória.

E é do que está entre que sua pintura se alimenta, entre o significante e o significado, entre a figura apagada e seu retorno, entre o explícito e o implícito. A artista torna visível o que pode haver entre o necessário, o que não poderia ser diferente, e o contingente, o indeterminado, que é pura liberdade, é porvir.

A narrativa que surge da trajetória de Marina Saleme não é uma narrativa com começo, meio e fim, com um desenrolar previsível; ao contrário, é a de uma historicidade interna e própria de seu trabalho. Cada obra abre caminho para a próxima porque retoma algo do anterior, algo que está literalmente ausente dela, que é percebido como falta e que será completado pelo novo trabalho. E o caminho para o próximo surge também do excesso de sentido de cada pintura, que é justamente a possibilidade de ela ser vista sob um ângulo não previsto, ou seja, como pura abertura.

 


Cauê Alves é professor do curso “Arte: história, crítica e curadoria”, da PUC-SP e curador adjunto da 8ª Bienal do Mercosul. Desde 2006 é curador do Clube de Gravura do MAM-SP. Realizou, entre outras curadorias, a mostra Quase líquido, Itaú Cultural (2008), e Mira Schendel: Avesso do avesso (2010), no Instituto de Arte Contemporânea.