Chove em São Paulo há três dias sem parar e, no entanto, o calor parece aumentar ainda mais nos finais de tarde. No bairro de Pinheiros, no interior do ateliê de Marina Saleme, a temperatura se mantém quente, mas inconstante: sete grandes pinturas – cerca de 2,20 m x 2 m cada uma – recém- concluídas tomam conta do ambiente, apoiadas sobre latas de tinta vazias. O lugar é pequeno para telas deste porte, está um pouco abafado, e o cheiro do óleo deixa inebriado quem acaba de chegar. O desejo que se tem é olhar para o alto e girar o corpo, como uma criança. A tinta se espalha pelo chão como um ser vivo e pegajoso, que avança sobre as paredes, colunas, escadas e objetos, as roupas e o corpo da artista. A vertiginosa experiência de estar ali lembra o impacto de adentrar pela primeira vez a célebre “instalação” circular de lírios-d’água criada por Monet no museu parisiense de Orangerie.
Quando volta do delírio, o visitante tem diante de si as pinturas da série Sem-Chão, reunião da mais recente produção de Marina Saleme para a individual na Galeria Luisa Strina (infelizmente, o “cubo branco” não propicia epifania semelhante à do ateliê). As questões tratadas por ela em sua individual anterior, Continentes, em setembro do ano passado, no Paço das Artes, retornam transfiguradas. Durante um longo processo ela trabalhou com as noções de conter/ser contido, invadir um lugar e transbordar, idéias que agora, de uma maneira diferente, se fazem presentes nestas pinturas, marcadas por um espaço novo, aberto e etéreo, como se feito de puro ar. Nota-se na parte superior dos quadros formas semelhantes a nuvens, criando céus plúmbeos, densos e carregados, prestes a desabar sobre nossas cabeças. No restante do plano, podemos entrever diferentes tramas de um geometrismo precário, estruturas frágeis que tentam dar sustentação e amparar os céus. Na tela mais interessante da série – Assento/Abismo, onde predomina o verde – um emaranhado de losangos atravessa o quadro na horizontal, numa perspectiva difusa que aprisiona definitivamente os elementos formais do plano, mais tinta e ar, num amálgama indissolúvel.
Em sua trajetória, Marina Saleme (São Paulo, 1958) sempre optou pelo caminho mais difícil, partindo das impossibilidades da pintura. Sua empreitada é reveladora da capacidade de a pintura se colocar no mundo como um trabalho contemporâneo, ao mesmo tempo em que se relaciona com a tradição da arte brasileira, sem para isso se apoiar em concessões ou citações. Podemos estabelecer, por exemplo, um rico diálogo com as paisagens de Alberto da Veiga Guignard (1896-1962), seus abismos metafísicos, seu espaço poroso, sua perspectiva múltipla, criadora de planos que não permitem ao olhar se fixar, vagando de um ponto a outro, à procura de um lugar. Só que o lirismo de Saleme não é rarefeito como o de Guignard, mas preciso como o de Alfredo Volpi (1896-1988). O mesmo Assento/Abismo pode ser relacionado a Elementos de Fachada do pintor ítalo-brasileiro, com suas formas verticais apontando para o céu, ripas de madeira que se erguem decididas para, no minuto seguinte, revelarem suas fraquezas. Realizam então um pacto com os demais elementos do quadro, em que estas formas sustentam e são sustentadas, apóiam e pedem apoio. Uma negociação ambígua e interdependente.
No ateliê de Marina Saleme, quase ao final de nossa entrevista, surge de trás de um quadro uma barata, que passa rápido sob nossos pés e se esconde sob um monte de papéis. A artista começa a gritar, entra em pânico. Ela já comentado sobre sua fobia de baratas. Vou verificar e não acho inseto algum, mas uma moeda de cobre, que pode ter rolado pelo chão. Estranho, pois eu também pensei ter visto, nitidamente, uma barata, coberta da mesma cor dourada do quadro que Marina escolhera para me mostrar. Na dúvida, ela prefere dar a entrevista por encerrado e ir embora. Mais um teste para a relação cérebro/olho. Vemos o que existe, o que pensamos estar vendo ou estamos sempre a meio caminho entre o real e nossa subjetividade visual carregada de memória, cultura e, às vezes, medo? Abandono o ateliê e me vejo de volta ao desordenado e inóspito mundo da metrópole, com a certeza de que aquelas questões valem tanto para a pintura quanto para a vida. Anoiteceu, e ainda chove em São Paulo.
Fernando Oliva é jornalista e crítico de arte, correspondente em São Paulo da Lapiz-Revista Internacional de Arte