Após quatro anos, Marina Saleme volta a expor no Paço das Artes. Em 1999, como convidada da Temporada de Projetos, apresentou telas que indicavam estados transitórios – entre o líquido e o sólido, entre formas e não-formas – subvertendo a ordem das coisas e demarcando o percurso de uma expressão pictórica que se delineava inquieta e vigorosa.
Naquele momento, o Paço das Artes já procurava apresentar mostras que explicitassem elementos do debate sobre o lugar da pintura na contemporaneidade. Hoje muito se discute acerca da resistência da pintura e dos impasses da crítica. Dando continuidade à questão, neste ano apresentamos obras de pintores contemporâneos, como Cristina Canale e Manoel Veiga.
Marina Saleme não se posiciona como uma artista entrincheirada neste debate. Se a pintura é, de fato, o seu meio de expressão, este se multiplica. A artista não defende um pensamento estritamente pictórico e, sim, a construção, a partir da pintura, de um universo individual centrado no bidimensional.
Nesse sentido, os trabalhos que apresentamos nesta exposição geram surpreendentes desdobramentos. Por um lado, a artista apresenta duas extensas e impenetráveis paredes trabalhadas com gesso e pigmento. Por outro, uma série de 22 dípticos fotográficos de uma paisagem íntima, interior. Estas fotos não são meros registros, mas obras recentes que incorporam um raciocínio pictórico configurado em outros materiais e processos.
A exposição individual de Marina Saleme procura apresentar os desenvolvimentos atuais da obra da artista e também indicar a tenacidade da produção pictórica, a despeito da sua propagada morte.
Conversa com Marina Saleme
Daniela Bousso
Diretora do Paço das Artes
Daniela Bousso – Venho repensando o lugar da pintura na contemporaneidade. Em um determinado momento, com o advento dos vídeos e das novas mídias, chegamos a pensar que não havia mais espaço para a pintura. Mas, de alguma forma, acho que essa situação tem muito mais a ver com posturas segmentadas da crítica, que entre o final dos anos 1980 e início dos 1990, trabalhou muito em cima de questões formalistas. Isto acabou gerando uma certa antipatia e também a mesmice dentro da própria pintura, interferindo muito no impacto e na qualidade das obras.
Marina Saleme – Mas eu acho que é, também, responsabilidade dos artistas que assumiram um comportamento sectário.
DB – Creio que é mais importante olharmos os rumos que a pintura brasileira tomou neste ínterim: quem são os sobreviventes e por que sobreviveram. Percebo no seu trabalho um constante questionamento. O seu assunto é a pintura, mas ele se desdobra. Isso é o que importa na contemporaneidade: os desdobramentos que um trabalho pode ter para se afirmar em um certo espaço de tempo. De 1988 para cá, estamos falando de 15 anos de pintura. E nesse período sua pintura sai do espaço bidimensional e passa para a parede.
MS – Não acho que eu tenha saído do espaço bidimensional. Eu tenho uma visão frontal, um interesse pelo plano e pelo pensamento pictórico. Acho que houve uma migração para outros suportes, como os jornais, a parede da minha exposição no Centro Universitário Maria Antônia e os trabalhos que tenho feito nas paredes do meu ateliê. Trabalho com vários suportes.
DB – Você quer puxar o tapete do suporte?
MS – Não, quero questionar tudo o tempo todo. Busco este questionamento no meu trabalho de desenho, nos recortes, no papel, nas fotos, nas paredes. Tenho medo de fórmulas e do fascínio que a pintura pode exercer.
DB – É, a pintura é um meio “mole”! É fascinante mesmo. Traz a possibilidade de se lidar com uma produção que é materializada, mas que é “mole”. No entanto, a sua pintura revela, além do prazer de pintar, uma quase dor, uma dor de parto. Eu sempre achei que, para você, a pintura poderia ser tecnicamente fácil, mas não existencialmente! É um processo sofrido.
MS – Ela é muito demorada, lenta. É por isso que eu gosto mais do óleo sobre tela que do acrílico, que é uma técnica que acontece mais rapidamente. O que demora não são somente as questões técnicas, mas também as internas. Às vezes saio do ateliê achando que um trabalho ficou pronto e, na manhã seguinte, ao olhar para a obra percebo que ela ainda me incomoda. Às vezes, fico meses olhando para um trabalho, para depois, em algumas horas, acabá-lo (para sempre). Como se eu tivesse descoberto a sua alma.
DB – Acho que a sua pintura corporifica uma tentativa de estruturação. Sempre observei você construindo o seu mundo interior, a partir da própria pintura. Eu me lembro de um momento difícil, em que seu pai estava doente e faleceu. Vi como você encontrava alento na reconstrução dessas estruturas.
MS – É verdade. No ano da doença e morte do meu pai, eu tinha duas exposições individuais marcadas: uma no Paço Imperial e outra na Galeria Luisa Strina. Pensei em desmarcá-las, mas mesmo tendo ficado muito tempo ao lado de meu pai, trabalhei tanto que teria material para mais uma mostra. Eu e a Angélica de Moraes conversamos muito sobre esse momento, quando estávamos vendo trabalhos como as Santas, em que existe toda a construção de uma paisagem repleta de vultos e ausências. Existem lugares nos quais você entra através de grandes mantos velados e outros nos quais você não entra, como nas áreas pintadas com tinta metálica. Eu estava construindo uma “ausência”. Mas não tenho certeza de ter tido essa consciência naquela época.
DB – Esses trabalhos são cavidades, buracos emocionais que mexeram com vínculos muito profundos. Anteriormente já havíamos travado desta discussão em torno das ausências e presenças, mas nos mantínhamos no território da figuração e da não-figuração. Hoje, senti uma abertura maior para tocar no assunto dessas ausências, incluindo aspectos da sua vida pessoal.
MS – Foi a partir da série de trabalhos desse período que comecei a me deter na produção dos espaços: o lugar exterior, o lugar das coisas, das pessoas. Na verdade, as pessoas estão e não-estão. A presença da morte certa altera todas as relações do espaço e do tempo. Acho que, por isso, eu nunca me interessei em fazer escultura, pois ela tem uma presença muito real, concreta demais. É muito óbvia. A pintura, não! Ela é ambígua, ela lhe pede a outra dimensão. É a possibilidade de reversão do espaço, do espelhamento.
DB – Eu sempre gostei da sua atitude em relação à pintura. É difícil falar em atitude quando o artista não é performer. Mas eu sempre gostei da sua busca de construção de um mundo imaginário. Eu nunca a vi preocupada com a representação propriamente dita, mas com a construção de um mundo outro, de um universo imaginário. O seu trabalho sempre chamou minha atenção para a pintura, mesmo no momento em que essa produção vinha tomando rumos formalistas. O meu vínculo com a pintura advém do fato de eu ter feito a minha formação profissional na Pinacoteca do Estado, olhando pintura. Olhando boa pintura! Todo mundo diz que a pintura brasileira é ruim, acadêmica, que não temos tradição em pintura. Mas não é verdade! Eu já me flagrei muitas vezes entrando pelas brechas de tinta na obra de um Pedro Alexandrino ou de um Giovanni Castagneto, podendo enxergar coisas que aludiam a formas de estar no mundo.
MS – A questão principal é ter um olhar abrangente. Não adianta, temos que aprender a olhar. Nas minhas aulas de pintura sempre utilizo referências de artistas que trabalham com outros meios, como fotografia, instalações, desenhos, etc. E os alunos me devolvem pinturas.
DB – Sempre há figura no seu trabalho? Você sempre trabalha com grandes formatos?
MS – Eu acho que quase sempre há figura. Trabalho de maneira diferente nos pequenos formatos, pois preciso alterar a linguagem, mudar de canal. As Poças são pequenos trabalhos, mas têm o tamanho de uma poça real e não a representação diminuída de uma poça.
DB – Quando me refiro à criação de um mundo imaginário na sua obra, exceto no caso da parede, penso num espaço virtual.
MS – Não acho que seja um espaço virtual. É um outro espaço. Um plano que faça um contraponto com o espaço em que eu estou.
DB – Até agora o seu trabalho tinha sido somente pictórico. Como você introduziu a imagem fotográfica para contracenar com a pintura?
MS – Na verdade, tudo começou com as poças, que já estavam incluídas em várias pinturas. Primeiro como nódulos oleosos, depois em telas de 15×20 cm que resultaram no livro de artista – Poças (2001). Então, elas viraram um trabalho autônomo. As poças passaram a ter uma cavidade – as Covas Rasas – em que eu cavava nos compensados de jornais ou eram cavadas nas paredes – as Feridas. A partir deste momento, fiquei obcecada em fazer uma parede inteira de poças. Eu não fazia idéia de como realizar isso, tive mesmo um entrave técnico. Como fazer para os porta-poças poderem conter, estando na parede? Ela tinha de ter algum volume. “Não tenho muito saco” de ficar empacada com problemas técnicos! Quando comecei a utilizar o gesso consegui fazer exatamente o que eu queria, mas o trabalho era mutante: mudava de cor; ora os porta-poças estavam cheios, ora vazios; às vezes eu desenhava em cima, apagava… Foi somente na hora em que fotografei essas experiências que observei que havia um outro trabalho muito interessante. O trabalho estava novamente pleno de pintura, porque eu tinha feito o volume, mas, ao fotografar, havia devolvido o volume para o plano.
DB – Inicialmente você tratou essas fotografias como registros?
MS – Mais ou menos. Peguei a máquina para registrar antes do trabalho mudar, ser destruído, mas então comecei a pensar que as fotos resultaram em um outro trabalho. No entanto, apesar de achá-las lindas, as fotos eram muito pouco para existirem sozinhas, e ficaram encostadas. Nesse momento quis ver os porta-poças numa situação inversa das que estavam na parede, queria que eles não apenas contivessem as poças, mas que estivessem rodeados do mesmo líquido que estavam contendo. Eu construí outros porta-poças e os levei para o mar e para o rio. Trabalhei com as questões do vazar, do estar submerso, de ser um recipiente invadido e afogado pela água. Fiz as fotografias e os porta-poças foram para o lixo. Esse novo conjunto de fotos veio dar sentido para aquelas imagens iniciais das paredes do ateliê, aquelas que estavam encostadas. Assim fui juntando as fotos, criando um pensamento novo. Elas se juntavam ora pela cor, ora pelo sentido, ora por opostos ou semelhanças. Assim nasceram esses dípticos que eu estou expondo.
DB – Você então fez um objeto?
MS – A Juliana Monachesi também me perguntou se eu tinha feito um objeto. Acho que eu não o fiz, ou pelo menos não o tratei como um objeto autônomo. Os porta-poças são um acontecimento a serviço de uma imagem. Eu os deixava no lixo da praia, o primeiro lixo que eu encontrasse. Por acaso, fiz essas fotografias em dias de sol e elas resultaram douradas. Num segundo momento, olhando para o conjunto, senti falta de imagens prateadas. Um dia fui à praia com chuva, pois precisava dessas outras imagens. Os dias de chuva são prateados. Este é um pensamento de pintura, ou talvez de cinema: dos filmes de Alexander Sukorov, que são uma pintura.
DB – Como você se sente em relação ao contexto da arte contemporânea no Brasil? Como você se vê inserida? Você pensa nestas questões?
MS – Todo mundo pensa nestas questões, mas ainda não tenho distanciamento da situação para me posicionar. No entanto, para mim, ser pintora não foi opcional. Eu tenho um desejo vital, uma necessidade de pintar. Embora adore vídeos, performances, instalações, meios considerados “mais contemporâneos”, não vinculo a contemporaneidade aos meios materiais de criação e sim ao pensamento. E trabalhar com estes novos meios também não é garantia alguma de contemporaneidade ou de qualidade. Já a questão da inserção é outro problema: não acredito que os artistas possam ter muito controle sobre esse aspecto. As coisas acontecem em diferentes esferas, existem as “ondas” e os modismos, as demandas do mercado, os curadores. O que acredito que possa ser feito é ter um trabalho o mais visceral possível, que possibilite estabelecer trocas com pessoas que acreditam no seu trabalho e procurar dar visibilidade à obra.
DB – Você pertence a algum grupo?
MS – Acho que não pertenço. Grupos não funcionam comigo. Eu gosto mais de “indivíduos”: gosto de algumas pessoas, de alguns trabalhos e de alguns pensamentos. Nada funciona em bloco para mim.
MS – Daniela, agora sou eu quem lhe pergunto: como você avalia as discussões sobre o “poder” da curadoria e o papel da crítica na obra de arte?
DB – Eu não acredito em relações entre curador e artista a partir de um exercício de poder. Deve sempre haver a possibilidade de criar sinergia, uma identificação com o artista com quem você está trabalhando. Por outro lado, quando o artista aceita trabalhar com um curador, também se supõe que ele se identifica com o trabalho, com a forma de pensar, deseja trocar idéias com esse curador. Deve existir um respeito mútuo como princípio básico, numa relação que se estabeleça de uma forma natural e, sobretudo, verdadeira. A minha relação com o trabalho do artista é de verdadeira identificação. De total parcialidade, no sentido que Baudelaire dizia não existir imparcialidade na crítica. Eu sou parcial porque faço o que acredito.
MS – De que forma você se aproxima da arte contemporânea?
DB – Eu penso a arte a partir da produção artística. Sempre existiu o cinema, sempre existiu a pintura e, daqui para frente, sempre existirá o vídeo, a arte eletrônica sem fios e assim por diante. Todos estes suportes estão à disposição dos artistas. O suporte é uma questão ultrapassada na cena contemporânea, fica ao livre-arbítrio do artista. O que me interessa mesmo, na arte, são as relações de epifania que ela pode suscitar em cada indivíduo. A possibilidade de nos depararmos com uma imagem, entrar por uma brecha que ela abre e passar para um mundo totalmente imaginário. Quando eu olho um trabalho do Bill Viola, a minha noção de temporalidade se altera. E isto é muito importante porque eu vivo em um mundo de comunicação de massa. O que me interessa na obra de arte é que, mesmo que ela fale da indústria cultural, ela não seja a indústria cultural, isto é, que ela renove e questione a própria noção de indústria cultural. Se a arte não afeta o espectador e não o conduz à condição de transformação do momento, eu não sei se ela é propriamente arte. Ela pode ser ilustração, publicidade, pode ser tecnicamente bem feita, com “artesania”, com o domínio do ofício. Mas somente o domínio do ofício, a meu ver, não é arte.
MS – Para mim estes “ofícios” são uma das coisas mais chatas!
DB – Esse aspecto do ofício fica muito atrelado à idéia das Belas Artes, que são práticas do século retrasado!
MS – O artista sabe onde tem que procurar o seu material. Eu não poderia fazer outra coisa senão trabalhar com essa matéria tão nítida, tão colorida, tão densa, que é a tinta.
DB – Como é a fotografia para você?
MS – Eu sou muito ligada em foto, mas acho que não é um fim no meu trabalho. É um meio de conseguir uma imagem determinada, nem sei mesmo se sei usar a máquina corretamente. Às vezes, quero fotografar uma imagem específica. Eu já fiquei fotografando escadas, não sei quanto tempo! Interessava-me aquela distância dos degraus.É diferente da pintura.
DB – A sua pintura parece trazer para você um espaço de indeterminação, ao passo que a foto traz o contraponto, na especificidade da coisa buscada. Você procura a pintura na foto?
MS – No meu trabalho, a foto é como se fosse uma letra de uma palavra. A pintura não, ela é plena, ela é a palavra. Tenho a impressão de estar fotografando com olhos de pintor. Mas minha relação com a fotografia é muito específica, acho que é um instrumento, uma ferramenta.
DB – Eu observo que a sua pintura traz um elemento da opacidade e do brilho. Estranhamente, não deixa passar a luz pela pintura. E na foto, obrigatoriamente, a luz vem! Se olhamos uma fotografia de algo que é pintado, quando aparece a paisagem, necessariamente a luz transparece na paisagem fotografada. Você queira ou não. Ela existe, está no lugar! Mas na pintura você faz o uso da luz que quiser.
MS – Todas as fotos foram feitas em horas específicas para que as cores ficassem como eu queria. Acho que é o mesmo procedimento das telas. A luz alterava a cor das paredes e eu escolhia como eu quero e não tenho dificuldade em conseguir isso. Quando estou pintando, estou quase sempre à procura da intensidade de uma cor, de ver até onde ela chega e não da cor propriamente dita. Os vermelhos fotografados das paredes também mudavam com as horas.
DB – Sua paleta exibe notas em tons diferentes. Você rebaixa um vermelho e, quando o intensifica para um magenta, são as mesmas notas sendo tocadas em tons diferentes. É a mesma coisa que acontece na justaposição, na busca dos diálogos, quando você junta duas imagens.
MS – É a mesma coisa quando uso as cores metálicas que não deixam a luz passar; elas lhe devolvem o plano. É como se fosse uma outra linguagem dentro da pintura, porque aí existem todos os elementos que estão construídos, todas as marcas de cor, as linhas de desenho, que normalmente aparecem. Ainda por cima, há outra coisa: a área que brilha e a área que não brilha, mas sempre querem dizer coisas diferentes.
DB – A presença do desenho no seu trabalho sempre existiu. Quando conheci a sua obra, em 1988, foi a primeira coisa que me chamou a atenção. O desenho, sugerindo uma figuração que não era explícita, apresentava uma realidade, mas a figura estava sempre presente, mesmo que “camuflada”.
MS – Não é assim. “É uma outra figura”.
DB – Este é um poder muito grande!
MS – Quando menina, fazia aulas de pintura acadêmica. Achava chato na época. Hoje percebo que estas aulas só me fizeram bem. Acho que as coisas ficam bem mais fáceis quando você tem controle técnico sobre elas. Depois veio a Faap…
DB – Desenhar e pintar, para você, deve ser como escrever, para um crítico.
MS – Acho que sim. Eu acho que fazer um texto é a mesma coisa que fazer uma pintura. Os processos criativos parecem os mesmos: a busca do pensamento, a ordem das coisas, os parênteses que você abre, o que você tira, o que põe no lugar. Acho muito parecida a literatura com a pintura, porque ela inclui o tempo, as camadas. Ambas são tessituras, parece que os processos de criação têm sempre o mesmo comportamento.
DB – A arte abre a possibilidade das pessoas se transportarem para este outro lugar do qual falávamos, indescritível. Potencializa-se, pois se apresenta como uma possibilidade de recriar permanentemente o sentido da existência.
Conversa com Marina Saleme – Daniela Bousso , junho de 2003, para o livro Continentes, da exposição com o mesmo nome no Paço das Artes, agosto de 2003