Invariavelmente, os catálogos e livros trazem fotos suas no ateliê ou da disposição das obras naquele espaço, quando não de trabalhos amalgamados ao lugar. Pode estar tudo diferente: o rosto da artista, o material com que está trabalhando, o resultado formal, mas nunca muda o local de gestação da obra. Essa simbiose com o espaço teria sido perturbada pela série de fotografias costeiras que alarga o entorno do mutável monte escarpado (este inteiramente engendrado no ateliê)? Marina Saleme diluiu a pintura em um mar de dúvidas. Ao mesmo tempo fixou-a definitivamente em um muro de lamentações (um lamento pela impossibilidade de conter). Nestas duas novas séries de trabalhos apresentadas no Paço das Artes, a pintura soma todas as horas de dedicação e embate com o meio que a artista empreendeu ao longo de mais de dez anos de carreira. E o resultado está, mais uma vez, além da pintura: extintos a lona e os pincéis, a bidimensionalidade e o gesto, restou a tinta espraiando-se por superfícies diversas, como se emancipada dos desígnios do autor.
A infusão de cores no mar e seu derramamento pelas paredes têm um elemento formal de conexão: os porta-poças de gesso. Foi por meio deles que a artista conquistou, para a sua pintura, a capacidade de derramar que buscava desde obras como Covas Rasas (1999) e Ferida (2001). Operações de recortar e escavar deram lugar ao molde quando Marina Saleme percebeu que as novas poças teriam de conter em vez de representar tal continência. “Mas se eu não sou uma escultora, nem me preocupo com as questões da escultura…”, ponderação que levou àquilo que melhor define sua obra: retirar o próprio chão.
Construídos os porta-poças, a artista acoplou-os à parede e, não satisfeita, deixou-os vagar na paisagem. O que já não cabia na pintura ganhou uma resolução formal fotográfica, que une as duas pontas do processo. Não se trata de fotografia pictórica ou fotografia entendida como pintura, mas sim de pensamento pictórico fixado por um mecanismo fotográfico. Nos 24 dípticos, as relações de transparência, de ritmo, de cor ou textura, de perspectiva, de profundidade, de analogia ou antagonismo, de luminosidade ou opacidade, de movimento, de silêncio evocam cabalisticamente todas as horas.
Ainda é possível, como se vê, atualizar os problemas da pintura em chave contemporânea. O íngreme monolito monocromático pontuado por poças oleosas comprova a tese ao reinventar uma vez mais o tradicional gênero da paisagem. Para ser visto de frente, de perfil, de baixo e de uma plataforma suspensa (apenas o conjunto fotográfico fornece algumas destas vistas ao visitante), esse acúmulo de montanhas ou de órgãos (a paisagem natural, a urbana e intestina já convivem e se confundem há tempo na história do gênero) transborda até mesmo as fronteiras já alargadas da obra de Marina Saleme.
Na verdade, a paisagem, para a artista, nunca foi paisagem e, sim, construção de espaço, de um espaço onde se pode estar: espaço real, não uma representação.
Os duplos fotográficos inscrevem um lugar real que não é nem o mar nem o espaço construído pela pintura, é um elo entre os dois, a passagem do líquido ao sólido, da contenção ao transbordamento. Juntar, para Marina Saleme, nunca é uma operação aleatória. Um campo convoca o outro, como o recorte de céu visto através das nuvens, que adquire outro significado quando ladeado pelos porta- poças à deriva sobre águas calmas, ou como a linha formada pela onda, que continua na junção entre o chão e a parede do ateliê, ambos pontuados por um recipiente centralizado no espaço.
Quando eu queria céu…
A pintura de Marina Saleme nasce da riqueza das coisas rápidas. Enfastiada de um desenho que é bonito demais, perfeito demais, a artista procura, com a pintura, inserir massas e destruir aquele mundo controlado. “Não tenho nada contra a figuração, fico lembrando dessas coisas, quando eu queria céu” – e aponta as pinturas do início dos anos 1990, nas quais começaram a aparecer a trama e o escorrido. “Sempre têm aqueles céus pesando em cima. Eu imaginava essas tramas se estendendo e algo de cima que as organizasse, como se fosse algo que vertesse de nós, além do nosso conhecimento. Os céus sempre foram, para mim, mais chão do que o próprio chão.”
Nas exposições de 1995, na galeria Luisa Strina, e de 1996, no Palácio das Artes, a trave/oratório passa a organizar o solo desta pintura encoberta de céu: “Essa estrutura significava a condição humana de estar rendido, era o lugar de se ajoelhar, delimitava uma posição abatida.” O céu, ela percebe, era o limite invertido. Já em 1997, nas pinturas representando figuras humanas enterradas, deitadas, o céu despencou inteiro: “Não acho nada etéreo olhar para cima, o céu é sempre um peso.”
As Gotas, expostas em 1999 no Paço das Artes, despencam do céu carregado. A questão do escorrido, aqui, fica mais clara. Em 2001, na mostra do MAM Nestlé, aparecem as pinturas assumidamente de tramas: “elas já tinham existido por baixo, recobertas de tinta”. Em Celeste, vemos a trama desencontrada. Em Jogados, a trama pontuada por gotas, que nos indicam a localização, são como coordenadas de tabuleiro de xadrez indagando sobre o lugar que essas marionetes (pessoas? peões?) podem ocupar no mundo.
Por que a dois?
Os 24 conjuntos fotográficos sinalizam o desdobramento de um pensamento. Já em sua primeira individual, no CCSP, em 1990, Marina Saleme expôs dípticos. Por que essa estrutura vem sempre em par? Quando começou a fotografar as paredes que estavam sendo “destruídas” no ateliê (porque receberam diferentes configurações e cores), “era como se não tivesse sentido mostrá-las sozinhas.
Então, eu preferia a parede. Foi aí que veio a idéia de juntar; aí parece que eu tenho algo a fazer, que eu tenho uma função. Acho que uso a estrutura vertical do meio; gosto de trabalhar em cruz: ou seja, a pintura é na horizontal e a estrutura vertical chega para organizar”.
Há muitos casos de dípticos que se formam à revelia da artista: ela costuma trabalhar, no ateliê, em mais de uma tela ao mesmo tempo e, no processo, uma pede mais espaço, ou tem alguma insatisfação, e acaba por invadir a outra: “Quando isso acontece, eu não anulo o que existia antes, simplesmente coloco elementos para juntar as duas. Aí ficam as cicatrizes, as camadas que se sobrepõem: o ‘passado’ está lá como textura, está na luz que vem debaixo, na composição com a cor que foi posta por cima; é como na vida, em que as coisas se sedimentam, mas não deixam de existir.”
Sempre à beira do abismo
A gênese deste líquido, que a pintura de Marina Saleme agora derrama, pode ser localizada em pinturas do final dos anos 1990 – como A Santa, exposta em 1997 no Paço Imperial – nas quais alguns nós de tinta começam a pontuar o espaço pictórico. As poças surgem destes nós: elas têm um ritmo para surgir e movimentar-se na tela. Então as poças viram gotas, que viram chuva, que viram feridas e cicatrizes. Em Covas Rasas (1999), trabalhos feitos com jornais sobrepostos, pintados de branco e escavados, o recipiente avizinha-se da forma dos porta-poças, que ainda irá surgir.
As Covas instauram uma ambigüidade entre abarcar e recobrir. As poças são portadoras de líquido ou o líquido camufla um outro elemento? A resina depositada nas covas turva a visão de palavras, notícias e memórias. Nas pinturas em que figuravam pessoas “enterradas” ou “deitadas”, elas eram sempre cobertas com uma massa. É como se aquela estrutura determinante, que antes figurava como um céu pesado, tivesse se curvado sobre as pessoas. Ou, então, como se não houvesse distinção entre um furo que se escava e um manto com que se reveste alguma coisa. Ambas as faturas pressupõem a memória que fica por trás: “Normalmente eu prefiro não saber para onde o trabalho está indo. Estou sempre à beira do abismo.”