Exposição individual
Instituto Figueiredo Ferraz, Ribeirão Preto, BR, 2019
— Digamos que você escolha duas, e apenas duas imagens.
— Duas? Mas aqui tem tantas.
— Sim, você verá que duas rapidamente viram quatro, depois oito…
— Então aquelas duas ali: Cinco casas e Paisagem azul com cinco casas. — Ótimo, porque nesse caso os títulos são intercambiáveis, e isso pode ajudar. De partida, podemos concordar que são duas pinturas equivalentes.
— Não, uma é horizontal e a outra vertical. — Sim, mas a informação objetiva – os objetos descritos e os enunciados – são análogos.
— Uma paisagem azul, cinco casas.
— Ou nada disso. Um retângulo azul com cinco marcas pretas em formato de traves de futebol e ao redor de cada uma delas uma hachura embranquecida.
— Mas isso não é o que o título diz.
— Não. É o que se apresenta imediatamente ao olhar. Mas essa descrição também se aplica indistintamente às duas pinturas.
— Então você acha que elas são iguais?
— Claro que não, mas elas são equivalentes em diversos aspectos, o que ajuda a pensar com mais clareza sobre suas diferenças.
— Uma é vertical e a outra é horizontal.
— Você já disse isso.
— Numa delas, as marcas (as “casas”) estão todas próximas umas das outras, na outra, elas aparecem mais espaçadas e o seu tamanho varia mais ou menos como se estivessem em perspectiva.
— Quanto mais perto, maior.
— Sim. E na verdade os azuis não são tão iguais. Eles têm o mesmo tom e o mesmo matiz, mas numa delas a tinta foi aplicada de modo muito desigual, deixando transparecer o escuro da camada anterior.
— Existem situações em que encontramos imagens assim, compostas de elementos similares, mas com disposições e densidades distintos.
— Fotografias tiradas em sequência no mesmo lugar. Quadros de um filme em película. Lembranças consecutivas de uma situação.
— Isso mesmo. Eu acho que essa artista deve ter um olho muito bom para esse tipo de variação.
— Para enxergar cenas semelhantes como diferentes?
— E para perceber muitas cenas em uma só. Sua relação com a fotografia demonstra isso: como uma imagem base trabalha de modos distintos dependendo do que se sobrepõe a ela. É o que acontece nas séries O céu que nos protege e Sábado. As massas de cor e a direção das pinceladas com diferentes diluições de tinta geram uma presença que tanto pode expandir quanto comprimir a espacialidade e a atmosfera da fotografia original.
— Mas aquela outra série que parte de fotografias, chamada Real, parece diferente. O espaço e o contexto fotografado permanecem sempre íntegros, apesar das intervenções pictóricas.
— Sim, porque essa percepção aguda das diferenças oferece um atalho: mesmo que a cena permaneça intocada, ela traz em si um número imenso de possibilidades latentes, que a artista materializa como se ligasse pontos em uma ampla digressão do olhar.
— Por isso talvez ela também experimente a soma de imagens fotográficas sem pintura ou desenho, como O passeio e Garrancho. — Acho que sim. Mas o mais interessante é pensar pelo caminho contrário, como isso se rebate no corpo de trabalho principal de Marina Saleme, as suas pinturas.
— Você acha que tem alguma coisa a ver com isso?
— Nós começamos a pensar nesse assunto por causa de duas pinturas, então, sim. Eu acredito que nós só conseguimos remeter suas pinturas a paisagens por causa de um recurso similar, mas no sentido inverso. É o que permite ao olhar perceber pistas a partir das quais extrapola interpolações de espacialidade, volume, distância e assim por diante. A artista pinta campos de cor, manchas, gotejamentos… é preciso algum trabalho visual/mental, mesmo que involuntário, para perceber nuvens, chuvas e montanhas.
— Mas em Noite com nuvens (díptico), por exemplo, percebo como acontece esse tipo de permutação entre as cores que identifico como nuvem, como solo e como céu; mas o que pensar da diferença das tonalidades de rosa?
— É aí que fica divertido. Não é porque a noção de paisagem depende desse dispositivo de imaginação visual que todas as pistas cumprirão uma função objetiva. Pelo contrário, cada escolha cromática e cada silhueta reflete critérios pictóricos que transbordam a descrição paisagística. Isso não quer dizer que nossa percepção não tentará produzir alguma legibilidade de cada decisão, mas às vezes simplesmente faltarão analogias possíveis e, nesses momentos, a obra estará lá nos lembrando que ela não é mais nem menos do que uma pintura.
— E a chuva na pintura não molha ninguém.
— A chuva na pintura é uma informação plana. E a tinta está seca.
— Essa conversa está me lembrando de uma outra coisa que eu fazia quando era criança. Ficava minutos inteiros olhando para os azulejos da cozinha, deixando o olho deslizar nas padronagens de volutas e curvas, até que começavam a aparecer rostos, monstros e outras imagens que obviamente não estavam lá.
— Eu fazia isso com o tapete da sala. E essa artista, a Marina Saleme, ela já trabalhou muito com padronagens que remetem a azulejos, ritmos de volutas e arabescos. Pendente é o exemplo mais próximo nesta exposição… Eu apostaria que ela também pode passar longos períodos olhando para padrões e ritmos, encontrando dentro deles um mar de exceções, enquadramentos, sobreposições e rimas entre formas.
— Muitos artistas ligados ao surrealismo valorizavam coisas assim, porque eram evidências de que enxergar vai além da apreensão objetiva das formas do mundo.
— Você pode chamar isso de inconsciente, por um lado, ou de excedente de consciência, por outro. Em todo caso, é muito significativo pensar que uma artista brasileira que começou sua produção na década de 1980 possa estar interessada em um recurso como esse, cujos meandros transformam processos de percepção.
— Por quê?
— Porque os discursos dos artistas da época, especialmente dos pintores, passavam principalmente por dois valores: o corpo-a-corpo com a materialidade da pintura, por um lado, e a possibilidade de simulação de códigos, signos e linguagens, por outro. Ainda que a escala da produção pictórica de Marina Saleme dê pistas de seu endereço histórico, sua proficiência visual passa por uma via alternativa, que cria algum desafio para a justaposição de sua pintura com a de vários de seus colegas.
— Realmente existe algo singular nessas duas vezes cinco casas… mas olhando para elas e voltando para as intervenções em fotografias, estou pensando agora de outro modo. E se esses desafios de variação de percepção e de “excedente de consciência”, como você diz, não nos falarem apenas de operações artísticas possíveis, mas também do acordo tênue que mantém nossa ideia de que o real é algo estável, cuja leitura é contínua e confiável.
— Você diz, como se nos colocássemos no lugar de quem transvê a cena do Céu que nos proteje, por exemplo?
— Imagina só, você olha para a frente em um dia qualquer e as nuvens não só estão se avolumando sobre o parque: a atmosfera toda se transformou, o céu se fez espesso e colorido, o solo é que parece abstração.
— É que a continuidade das coisas é muito mais frágil do que imaginamos. Os desvios de percepção às vezes são os atos-falhos que dão indícios da real fragilidade do real.
Paulo Miyada
Maio de 2019