Mário Grisolli
Mário Grisolli
Mário Grisolli
Mário Grisolli
Mário Grisolli
Mário Grisolli
Mário Grisolli
Mário Grisolli
Mário Grisolli
Mário Grisolli
Pintura
Exposição individual
Paço Imperial, Rio de Janeiro, BR, 2017

REVELAÇÕES E AUSÊNCIAS: UM ATO CONTÍNUO

Felipe Scovino

Existem dois procedimentos no trabalho de Marina Saleme que são evidentes nessa exposição e que não necessariamente estão separados ou individualizados. Tais procedimentos se confundem, invadem-se mutualmente, criando um processo investigativo dos mais instigantes. O primeiro deles é o fato de sua obra revelar ocultando, isto é, o acúmulo de camadas e as diferentes técnicas que são empregadas no trabalho criam uma volumetria que supostamente nos afasta da primeira camada. Contudo, a artista elabora um sistema que não nos deixa esquecer dessa imagem inicial, levando-nos a um território de novas descobertas, achados e premissas sobre ela que nos faz valorizar seu potencial pictórico e – por que não? – mágico.

Em Pares, uma série de quatro fotos documentadas pela artista no Regent’s Park em Londres, temos um exemplo dessa exploração paradoxal entre aparência e ausência que tanto perpassa sua trajetória. As fotos foram impressas com efeito reticulado, permitindo que, a depender da distância e da perspectiva que o espectador toma em relação à obra, é possível perceber gradativamente a passagem entre uma foto que documenta (com uma atmosfera mais densa e silenciosa), uma paisagem bucólica e finalmente a aparição de uma massa pictórica que se impõe como uma personagem e não uma ilustração daquela cena. O espectador parece perder seu senso de orientação, pois uma espécie de turbilhão de cores e formas cria uma outra capacidade de entendimento sobre o real, sobre aquilo que o cerca. Conforme a posição em relação à imagem, o espectador pode apagar ou revelar personagens, árvores, flores, chão ou nuvens. De certa forma, ele se coloca como protagonista e autor de uma narrativa.

Fotografia e pintura mesclam-se em um mesmo repertório: o de criação de situações capazes de subverter a ordem do plano e daquilo que está diante de nós. Passamos a duvidar sobre o que sempre se constituiu como verdade. A estratégia de revelar ocultando também está presente na série O passeio, de 2013, em que, de forma surpreendente, a artista se depara com uma série de árvores: com a intenção de serem protegidas do frio, estas foram cobertas por sacos de café. O modo como foi feito esse procedimento transmite às árvores encobertas um valor altamente antropomórfico. Remetendo, de certa forma, à disposição dos soldados de um exército, aquelas “pessoas” parecem marchar a esmo. Diante dos graves fatos políticos que o mundo atravessava naquele início de ano, é difícil não se lembrar da grande massa humana de imigrantes que arriscam suas vidas cruzando mares e oceanos com a esperança de uma vida melhor do que em seus países de origem, onde são massacrados por guerras civis, fome e todo tipo de desolação. Como corpos ausentes de carne, o passeio de Marina se coloca como um grito surdo e emocionado contra a hipocrisia do mundo.

As pinturas de Marina – e também uma série de fotografias intitulada As verdades – revelam outro procedimento: a economia de gestos investe na construção de uma narrativa que se faz aberta ou flexível para o espectador. Nessa série fotográfica, observamos que a imagem inicial de duas traves de futebol feitas com estacas de madeira (como aquelas fabricadas provisoriamente à beira do mar), é transformada paulatinamente, por meio de uma construção pictórica, em uma espécie de casa. Os vazios (a ausência, a falta ou o débito) das duas traves se veem preenchidos ao longo da sequência fotográfica, transformando uma gambiarra ou ainda uma paisagem prosaica – capturada pela artista de forma totalmente ocasional – em um arquétipo de abrigo ou morada. Como em um filme, peça, livro ou qualquer suporte narrativo, somos guiados a projetar uma história, um acontecimento que se faz de forma incessante e envolvente. É também o caso de Garranchos, um políptico em que imagens recortadas de galhos de uma mesma árvore compõem simbolicamente uma dança. A disposição das imagens – que nunca obedece a um padrão, isto é, o políptico pode ser montado das formas mais diversas – e a maneira intimista e poética como os galhos foram documentados geram a representação de um movimento circular que remete diretamente a um baile. A sombra do galho contra a luz da cidade reforça um tom de celebração do corpo em deslocamento. Mais uma vez, elementos da natureza se confundem com aspectos humanos.

É curioso pensar que a captura das imagens pela fotografia quase sempre coloca Marina em uma posição de “turista acidental”. E é esta característica do acidente, do acaso ou do aleatório que, parece-me, move sua pintura. Seus trabalhos possuem uma aparência de recortes, paisagens ou formas díspares que, ao se encontrarem, avizinhando-se, acabam formatando uma sequência típica da narração. Trata-se de um encontro de ilhas, territórios semânticos, que firmam proximidades e consequentemente constroem afinidades eletivas. Especialmente nos dípticos aqui expostos o que se revela é um constante atrito e conformidade entre as cores e formas construídas. Figura e fundo, luz e sombra estão constantemente negociando espaços, criando ritmos e (des)aparições. É possível perceber nesse corpo de trabalhos a ocorrência de um senso que aponta para uma característica de imprecisão, no sentido de não estar finalizado. Essa a natureza é a principal qualidade da obra de Marina: o eterno desafio de se refazer a todo o instante, de exibir sua própria inconformidade e o compromisso com a mutabilidade. No conjunto de pinturas que formam um painel, observamos a presença da imagem de uma mulher e uma criança sentadas como se estivessem brincando ou interagindo – a mesma que aparece em Pares.

Tanto em suas fotos quanto em suas pinturas sobressai um ambiente de silêncio e melancolia. E é a introdução de pequenos gestos, a harmonia entre fotografia e pintura construindo um diálogo de intersecção e narrativa poética coesa, assim como uma estrutura “aparentemente” em débito, logrando um repertório de fabricações sutis e intensas, que fazem da obra de Marina Saleme uma pesquisa única.        ­