Exposição individual
Galeria Luisa Strina, São Paulo, BR, 2016
Revelações e ausências: um ato contínuo
Felipe Scovino
Existem dois procedimentos no trabalho de Marina Saleme que são evidentes nessa exposição e que não necessariamente estão separados ou individualizados. Tais procedimentos se confundem, invadem-se mutualmente, criando um processo investigativo dos mais instigantes. O primeiro deles é o fato de sua obra revelar ocultando, isto é, o acúmulo de camadas e as diferentes técnicas que são empregadas no trabalho criam uma volumetria que supostamente nos afasta da primeira camada. Contudo, a artista elabora um sistema que não nos deixa esquecer dessa imagem inicial, levando-nos a um território de novas descobertas, achados e premissas sobre ela que nos faz valorizar seu potencial pictórico e – por que não? – mágico.
Em Pares, uma série de quatro fotos documentadas pela artista no Regent’s Park em Londres, temos um exemplo dessa exploração paradoxal entre aparência e ausência que tanto perpassa sua trajetória. As fotos foram impressas com efeito reticulado, permitindo que, a depender da distância e da perspectiva que o espectador toma em relação à obra, é possível perceber gradativamente a passagem entre uma foto que documenta (com uma atmosfera mais densa e silenciosa), uma paisagem bucólica e finalmente a aparição de uma massa pictórica que se impõe como uma personagem e não uma ilustração daquela cena. O espectador parece perder seu senso de orientação, pois uma espécie de turbilhão de cores e formas cria uma outra capacidade de entendimento sobre o real, sobre aquilo que o cerca. Conforme a posição em relação à imagem, o espectador pode apagar ou revelar personagens, árvores, flores, chão ou nuvens. De certa forma, ele se coloca como protagonista e autor de uma narrativa.
Fotografia e pintura mesclam-se em um mesmo repertório: o de criação de situações capazes de subverter a ordem do plano e daquilo que está diante de nós. Passamos a duvidar sobre o que sempre se constituiu como verdade. A estratégia de revelar ocultando também está presente na série O passeio, de 2013, em que, de forma surpreendente, a artista se depara com uma série de árvores: com a intenção de serem protegidas do frio, estas foram cobertas por sacos de café. O modo como foi feito esse procedimento transmite às árvores encobertas um valor altamente antropomórfico. Remetendo, de certa forma, à disposição dos soldados de um exército, aquelas “pessoas” parecem marchar a esmo. Diante dos graves fatos políticos que o mundo atravessava naquele início de ano, é difícil não se lembrar da grande massa humana de imigrantes que arriscam suas vidas cruzando mares e oceanos com a esperança de uma vida melhor do que em seus países de origem, onde são massacrados por guerras civis, fome e todo tipo de desolação. Como corpos ausentes de carne, o passeio de Marina se coloca como um grito surdo e emocionado contra a hipocrisia do mundo.
As pinturas de Marina – e também uma série de fotografias intitulada As verdades – revelam outro procedimento: a economia de gestos investe na construção de uma narrativa que se faz aberta ou flexível para o espectador. Nessa série fotográfica, observamos que a imagem inicial de duas traves de futebol feitas com estacas de madeira (como aquelas fabricadas provisoriamente à beira do mar), é transformada paulatinamente, por meio de uma construção pictórica, em uma espécie de casa. Os vazios (a ausência, a falta ou o débito) das duas traves se veem preenchidos ao longo da sequência fotográfica, transformando uma gambiarra ou ainda uma paisagem prosaica – capturada pela artista de forma totalmente ocasional – em um arquétipo de abrigo ou morada. Como em um filme, peça, livro ou qualquer suporte narrativo, somos guiados a projetar uma história, um acontecimento que se faz de forma incessante e envolvente. É também o caso de Garranchos, um políptico em que imagens recortadas de galhos de uma mesma árvore compõem simbolicamente uma dança. A disposição das imagens – que nunca obedece a um padrão, isto é, o políptico pode ser montado das formas mais diversas – e a maneira intimista e poética como os galhos foram documentados geram a representação de um movimento circular que remete diretamente a um baile. A sombra do galho contra a luz da cidade reforça um tom de celebração do corpo em deslocamento. Mais uma vez, elementos da natureza se confundem com aspectos humanos.
É curioso pensar que a captura das imagens pela fotografia quase sempre coloca Marina em uma posição de “turista acidental”. E é esta característica do acidente, do acaso ou do aleatório que, parece-me, move sua pintura. Seus trabalhos possuem uma aparência de recortes, paisagens ou formas díspares que, ao se encontrarem, avizinhando-se, acabam formatando uma sequência típica da narração. Trata-se de um encontro de ilhas, territórios semânticos, que firmam proximidades e consequentemente constroem afinidades eletivas. Especialmente nos dípticos aqui expostos o que se revela é um constante atrito e conformidade entre as cores e formas construídas. Figura e fundo, luz e sombra estão constantemente negociando espaços, criando ritmos e (des)aparições. É possível perceber nesse corpo de trabalhos a ocorrência de um senso que aponta para uma característica de imprecisão, no sentido de não estar finalizado. Essa a natureza é a principal qualidade da obra de Marina: o eterno desafio de se refazer a todo o instante, de exibir sua própria inconformidade e o compromisso com a mutabilidade. No conjunto de pinturas que formam um painel, observamos a presença da imagem de uma mulher e uma criança sentadas como se estivessem brincando ou interagindo – a mesma que aparece em Pares.
Tanto em suas fotos quanto em suas pinturas sobressai um ambiente de silêncio e melancolia. E é a introdução de pequenos gestos, a harmonia entre fotografia e pintura construindo um diálogo de intersecção e narrativa poética coesa, assim como uma estrutura “aparentemente” em débito, logrando um repertório de fabricações sutis e intensas, que fazem da obra de Marina Saleme uma pesquisa única.
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A Galeria Luisa Strina tem o prazer de apresentar a sexta exposição individual da artista Marina Saleme.
Questões que versam sobre a duvida em relação a figura e a sua real posição no mundo, a vulnerabilidade da existência, presença e principalmente ausência de todas as coisas frente ao tempo e espaço são uma constante no trabalho de Marina Saleme. Marina se formou em Artes Plásticas na Faap em 1982 e deu aula de pintura e seus processos criativos durante 10 anos no Instituto Tomie Ohtake. A artista trabalha desde então predominantemente com pintura, desenho e fotografia.
Seu processo é lento e reflexivo: suas pinturas são feitas em camadas, assim como seus desenhos e fotos, que não envolvem processos imediatos.
Marina trabalha com a criação, com o apagamento e com o resgate – o ato de apagar, em sua obra, está relacionado com a impermanência das coisas ou mesmo das verdades. A artista trabalha formalmente e poeticamente questões sobre o visível e o invisível e a alternância entre eles: o real e o irreal também são temas presentes em seu trabalho, assim como os efeitos dos diversos pontos de vista a respeito da verdade.
Em alguns de seus trabalhos, pessoas e paisagens pairam sob um imenso céu, que, por sua imensidão, infinitude e mistério, submete-nos metaforicamente ao incontrolável da condição humana. Trata-se de lugares onde jorram graças e desgraças (que no trabalho da artista tomam forma de linhas, gotas, feridas, arabescos) e para onde alguns endereçam suas preces.
Na série de fotos Real, a realidade é questionada por meio de uma mesma imagem que sofre pequenas intervenções e que se desmente a cada vez, alternando radicalmente a perspectiva da exposição dos elementos.
Suas fotos normalmente são trabalhadas em série e as imagens vão se desdobrando – acrescentando ou discutindo o sentido das outras. A pintura retém todos os pensamentos em seu interior, onde tudo é construído – até mesmo as imagens apagadas. Quanto a esse aspecto, vale relembrar as palavras de Francis Alÿs: “Cada avanço guarda a dívida com o que precede”.
Marina Saleme trabalha a pintura como linguagem (ferramenta para a construção de lugares em que as coisas possam estar) ou não, finalmente.
O título ‘O céu que nos protege’ foi tomado emprestado do filme homônimo de Bernardo Bertolucci de 1990.
Destacam-se as exposições individuais e coletivas nos seguintes museus e instituições: MAM-RJ (Rio de Janeiro); Paço Imperial (Rio de Janeiro); Paço das Artes (São Paulo); Centro Universitário Maria Antônia (São Paulo)’ MAM-SP (São Paulo); Palácio das Artes (Belo Horizonte); Musée d’art contemporain de Baie-Saint-Paul (Québec); Embaixada do Brasil na França (Paris), entre outras.
Suas obras estão em coleções públicas e particulares de destaque, como o MAM-RJ (Rio de Janeiro); Coleção Instituto Figueiredo Ferraz (Ribeirão Preto); Instituto Cultural Itaú (São Paulo); MAM-SP (São Paulo); Pinacoteca do Estado de São Paulo; Fundação Padre Anchieta / Metrópolis, São Paulo.